segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Valdemir Miotello

PODER, METAMORFOSE E LINGUAGEM
Valdemir Miotello

1.        Vivemos rodeados por todos os lados pelo poder. Relações de poder, a bem da verdade. Relações hierarquizadas de poder, dizendo melhor. Pois que nem o poder e nem nenhum outro objeto/signo/valor construído nas relações humanas, vive pulando pelo meio da rua, tendo vida própria e autônoma. São as relações entre o outro e eu o ponto de partida constituidor de qualquer realidade humana. Nada é assim por si ou por destino, ou por vontade de um deus qualquer. Muito menos as realidades são de um jeito ou de outro jeito por desejo ou vontade de um homem apenas, qualquer homem. O que resulta pala ação de algum homem, qualquer homem, é sempre resultado do movimento, na mesma direção ou oposta, de dois  ou mais homens. De uma vontade, de uma emoção, de um querer, de um projeto, de dois ou mais homens, que se dá em alguma atividade. É o vigor emotivo-volitivo. Pode ser uma atividade linguística. 
2.        O que garante vida à existência enquanto humana são as condições e formas da comunicação social. Essa comunicação é que garante a existência dos signos, pois ela proporciona a interação de valores distintos sobre a mesma realidade material. Ela resulta de consenso/dissenso entre indivíduos. A palavra é o lugar mais claro onde esse papel contínuo da comunicação e esse caráter formador de sentidos aparece. Ela é o modo mais puro e sensível da relação social. Toda e qualquer refração valorativa/ideológica em qualquer ser em formação é acompanhada de uma refração ideológica, como fenômeno obrigatoriamente concomitante.
3.        Jamais o signo vive isolado. Uma vez ele compreendido e dotado de sentido, na relação de dois ou mais sujeitos em interação, e essa não precisa ser face a face, ele se torna parte constitutiva da consciência verbalmente constituída. A interação se dá em uma realidade concreta, que envolve ambiência física e social e horizonte temporal. Assim o signo é determinado por essa realidade, e ao mesmo tempo reflete e refrata a realidade em transformação. Esse processo de emprenhação mútua se dá em movimento em direção ao novo, ao por-vir, ao vir-a-ser, o que exige que a consciência se alargue pra entrar em contato com outra consciência que também está em processo de alargamento.
4.        Cada época e cada grupo social tem um repertório de formas de discurso neste jogo da comunicação social e ideológica. E essas são determinadas pelas relações de produção e pelas estruturas sócio-políticas. Aqui aparece um componente poderoso no processo das interações que é a organização hierarquizada das relações sociais. Determinado grupo social inter-age a partir de um conjunto de formas de enunciação, que se organizam a partir de determinados temas, e isso forma uma unidade orgânica indestrutível. O que permite mover esse repertório é a mudança que pode se dar nas formas de comunicação sócio-verbal. Os signos são determinados tanto pela organização social de tais indivíduos, quanto pelas condições em que essas interações se dão. Modificar essas formas causa uma modificação nos signos, logo na consciência, logo nos sujeitos, dois ou mais.
5.         Dos índices sociais de valor chegamos aos índices individuais de valor, pois a consciência individual os absorve como se fossem seus, mas eles são de natureza interindividual. Sua sobrevivência exige a interação. Ficar se banhando nas águas sossegadas da consciência individual é sua morte. Os índices de valor exigem as turbulências, as tensões, as atmosferas sociais contraditórias. São os embates entre os temas e as formas; os temas de um determinado grupo social e as formas de uma determinada condição socioeconômica. A exigência do embate é porque eles crescem juntos, apenas tem existência juntos, e se modificam apenas juntos, no mesmo processo. Conseguimos ver isso numa escala histórica maior, o que significa que essa metamorfose se dá de forma contínua. Não temos a crisálida e depois a borboleta, como que por milagre. Temos um contínuo de metamorfoses, imperceptíveis numa escala vivencial, mas real o suficiente pra refletir e refratar essa possibilidade.
6.        A reflexão no signo é a continuidade do mesmo, do igual, do consensual, dos mesmos índices de valor daquele grupo social. A inserção desse grupo social na comunicação social possibilita o contato tenso com outros grupos sociais, e então o confronto de interesses sociais distintos, contraditórios, opostos, dissensuais provocam a possibilidade da refração do ser no signo. Operar com o signo no limite único do consenso, da reflexão apenas, é condená-lo à morte, pois ele estará certamente excluído da luta, do confronto social. Apenas o entrecruzamento dos índices de valor é que mantém sua vitalidade, e consequentemente alargam forçosamente a consciência em devir. Senão o resultado será uma consciência embotada, obturada, fechada em si mesma, defunta, intransitiva. Os que dominam os grupos sociais tendem a manter oculta e apagada essa tensão, essa luta dos índices de valor. Esse é seu campo básico e fundamental de dominação. Como manter os bens que me põem na escala superior da hierarquia social se não houver um discurso poderoso que garante que posso ser dono daquele bem?
7.        Mas como se mexe a cabeça, o psiquismo subjetivo consciente do homem? O que é a atividade psíquica individual e como se defrontar com ela, como encaixar ela nos processos de mudança? Toda atividade mental, meu modo de pensar, de valorar, de ver o mundo apenas existe sob a forma de signo. Tudo o que sou, todas as minhas emoções, todas as minhas atividades mentais são exprimíveis. Meu material semiótico são meus gestos e meus processos corporais. Meu corpo é parte integrante de um meio social específico. Assim vivo imerso totalmente em um universo de signos que abastecem meu pensamento, e o subordinam ao sistema ideológico, mas ao mesmo tempo vivo em um outro sistema, o sistema do meu psiquismo. Dessa forma meu caráter único vem não do meu organismo, mas da totalidade das condições vitais e sociais em que meu organismo se encontra colocado. Essa tensão entre o meu interior psíquico e o meu exterior social e ideológico, entre a vida interior e a vida exterior, entre o discurso interior e o discurso exterior é que produz as faíscas criadoras, de renovação sem fim. E essa luta de síntese dialética se dá na arena da palavra, do signo, que se apresenta como o lugar do processo da interação viva das forças sociais. 
8.        Ao inter-agir tomo a palavra no estoque social dos signos disponíveis, mas ela se atualiza inteiramente, determinada pelas condições das relações sociais. Dito dessa forma, as metamorfoses deveriam ser constantes e para ambos os interlocutores. Normalmente sentimos a estabilidade, não cremos na mudança, não percebemos o movimento. A atividade mental se apresenta como sendo uma atividade mental do eu, que tende para a auto-eliminação, em detrimento de uma atividade mental do nós, ideologicamente bem formada, que garante a modelagem ideológica. Ao se moldar num determinado material a consciência se larga, pois que, em retorno, ela estrutura a vida interior, dando uma estabilidade e direção social mais nítida. É o exterior que organiza o interior. O meio social tenso, de relações, define e arruma quem sou. Portanto, preciso inter-agir, preciso falar, preciso contrapalavrar, dialogar, refutar, confirmar o movimento sígnico que me atinge.
9.        Aqui estamos no eixo central da questão da mudança na modelagem mental e exterior, ideológica portanto, de minha existência enquanto sujeito. Preciso compreender os sentidos que estão sendo postos em circulação, nesse movimento social imenso, totalizante, e que para mim se dá no seio do meu grupo social, onde me individuo. A compreensão só é possível se eu atacar a palavra, o signo recebido, com minhas palavras próprias, que me constituem. Preciso ser dono de palavras, nesse nível interior. E mesmo assim elas são social. Compreendo um signo exterior, alheio, do outro, com meu signo interior, próprio. Esse diálogo é que produz a faísca da mudança, do encontro entre a palavra alheia e a palavra própria, produzindo uma palavra alheia-própria. Esse diálogo não é uma iniciativa ou uma concessão do eu. Ao contrário, ele é a condição constitutiva do eu. Sou, enquanto eu individual, uma construção do diálogo. O diálogo proíbe o enclausuramento do eu na sua identidade. A identidade do eu é uma armadilha. A identidade do eu só pode ser social. O individuo humano é dialogal contra sua vontade. O diálogo é um limite do eu, sem álibis, sem que eu possa fugir daqui e aparecer em um outro lugar. Não tenho escapatórias. O que significa que o que defendemos ser a identidade, precisamos estabelecer um outro lugar para sua constituição, que é a alteridade. Apenas o Outro pode constituir o Eu. Essa é a Revolução Bakhtiniana.
10.  E com base nesse mesmo pensar revolucionário, outros lugares sociais precisam ser invertidos nesse movimento constituidor. Ao se pensar a ideologia, propugnar para se estar ao lado da ideologia do cotidiano, dos encontros casuais, passageiros, rápidos, de baixa dimensão social ainda, mas que estão na linha propícia da mudança; ao se pensar o movimento cultural, lembrar que o lugar da mudança não é estar ao lado da cultura oficial, mas ao lado da cultura popular, cômica, grotesca; ao se pensar linguagem, não se colocar do lado estabilizador do sistema linguístico, mas ficar ao lado da fala, da palavra enunciada; ao pensar o discurso, não ficar ao lado do discurso direto, linear, mas procurar o discurso indireto, livre, pictórico, sem domínios bem definidos; entre o calar e o silenciar, ficar ao lado do silenciar, que faz parte das novas significações, e não do calar, que é da ordem do domínio, do sentido único vindo do emissor. Esse movimento é um movimento contínuo de alargamento, de reavaliação da palavra do outro. Nada pode permanecer estável nesse processo. A palavra enunciada é uma palavra libertadora. Enunciar. Falar. Libertar a palavra. Liberdade que a palavra comporta por estar entre um homem que fala com outro homem que fala. Nenhum deles é seu dono. Ambos são seus constituidores. Ambos são constituídos por ela. O movimento dialógico. Onde a entonação, os desejos, as relações vivas, os projetos de dizer e os meus sonhos se fazem presentes. Meu ato responsável. Do qual não posso fugir. Que apenas eu devo enunciar, assinar embaixo, responder por ele. Essa é a única estrada que leva homens e palavras ao mundo novo, da metamorfose.

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