segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Rafael Giovani Hansseler Saldanha

O PODER NAS UNIVERSIDADES BRASILEIRAS NÃO É ATO RESPONSIVO
Rafael Giovani Hansseler Saldanha[1]
Universidade Federal do Pará

Introdução
            Este texto é mais uma livre análise do locus em que me encontro no atual momento da vida. É uma contribuição, à luz da filosofia bakhtiniana, para o entendimento das relações de poder estabelecidas nas Universidades no âmbito do Brasil. Há muito de minha experiência pessoal no cotidiano da Universidade. É mais uma reflexão e um ponto de vista a ser repartido com fins de estimular a interação entre aqueles que se interessam pelo tema da democracia e do arranjo do poder no espaço acadêmico, tão impregnado de mitos e peças ritualísticas. 

Uma breve análise do micro espaço de poder: a questão da universidade brasileira
            Antes de tudo, é preciso situar o leitor de que a análise do micro espaço universitário se dá nesse texto por entendê-lo como um retalho, uma mostra da sociedade na pós-modernidade, sendo o local conectado com o global. Assim, a universidade, enquanto instituição formadora é o campo no qual o poder simbólico talvez se expresse mais claramente. A força do discurso de autoridade, por meio dos seus doutores seguidores na academia, dá vida ao ritual de instituição do qual nos fala Pierre Bourdieu. Segundo ele, é
legítimo tratar as relações sociais – e as próprias relações de dominação – como interações simbólicas, isto é, como ralações de comunicação que implicam o conhecimento e o reconhecimento, não se deve esquecer que as trocas linguísticas – relações de poder comunicação por excelência – são também relações de poder simbólico onde se atualizam as relações de força entre os locutores ou seus respectivos grupos. (BOURDIEU, 1930, p. 23)

            A organização do poder nas universidades, em se tratando de uma análise no Brasil, o que não se diferencia muito no mundo, pode ser comparada, grosseiramente, à organização proposta por Ferdinand Saussure à Linguística. Ainda segundo Bourdieu, assim como todo o destino da Linguística moderna foi selado no ato saussuriano de separar a “linguística externa” da “linguística interna”, conferindo apenas à última a noção central de Linguística, dela retira todas as possibilidades de investigação que possam relacionar a língua com a história política de seus falantes ou com a geografia da região onde é falada. Entende-se que não acrescentariam nada ao conhecimento da língua tomada em si mesma. “Nascida da autonomização da língua em relação as suas condições sociais de produção, reprodução e de utilização, tem-se a Linguística estrutural.” (BOURDIEU, 1930).
            Permitindo-se a comparação, é possível afirmar que a Universidade moderna é estruturalista e por isso está condenada a girar sempre em torno de palavras mortas. No imaginário das gentes esse espaço produz informação e conhecimento para ser reproduzido e utilizado na solução dos problemas de toda natureza. Pensa-se ser a academia um aliado importante, tendo na extensão universitária, elemento externo no tripé ensino-pesquisa-extensão, o ponto alto da interação entre academia e povo, conforme o pensamento bakhtiniano de que a palavra (tido aqui como o discurso de autoridade dos acadêmicos) comporta duas faces, procedendo de alguém (meio científico, doutores, inteligência) para se dirigir a alguém (corpo coletivo, sociedade, povo). Não é um movimento vertical, hierárquico, em que uma vez produzido o conhecimento é isso e ai está. Trata-se sim de uma inter-ação que estabelece um confronto em busca do horizonte social, podendo neste contexto ser entendido como a melhoria da vida a partir da contribuição universitária, em constante contato com a realidade histórica dos sujeitos.
Nem é purista a condição de existência do meio acadêmico. Não é interno, surgindo da vontade genuína de alguns poucos iluminados, e ausente de qualquer influência discursiva. É palavra e contrapalavra, o jogo da interação que constitui o trabalho de apropriação dos fenômenos para investigação, sistematização e devolução do conhecimento produzido para aplicação na vida objetiva, concreta. Se para Bakhtin viver é tomar posições continuamente, respondendo desde um sistema de valores que se é inserido, esta é mais uma razão para que a academia nunca seja neutra e imparcial.
O que pode se afirmar é que certamente hoje as universidades pouco participam com grande impacto na transformação da sociedade brasileira, no desempenho nacional das áreas sociais, mirando a elevação dos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH), atestados pelo IBGE como situação delicada em regiões como o Norte e o Nordeste. A máquina das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) deveria ser engendrada para solucionar gargalos e misérias. Em uma ação integrada e honestamente planejada, Estado e academia poderiam encontrar as saídas de que a sociedade precisa para deixar a realidade menos encharcada de famélicos do corpo e do espírito. O problema reside no apego à máquina e ao poder dos que dirigem as universidades. Fecham-se em si mesmos, dispensam suas energias para dentro, na disputa pelo controle do que é pequeno, limitado e mediano.
As eleições para o cargo de Reitor ajudam a entender essa lógica. E segue-se assim para todos os cargos dos escalões seguintes. Tomando o exemplo da última eleição para Reitor da Universidade Federal do Pará (UFPA), em dezembro de 2008, o Conselho Superior Universitário conseguiu impedir a insanidade de aplicar uma consulta eleitoral baseada na Lei dos 70% – o voto de um processor tem o peso de 70% na apuração, enquanto o votos dos alunos e dos técnicos tem 15% do peso cada um – trata-se de um resquício, uma herança ruim deixada pelos anos difíceis da ditadura militar brasileira, Lei até hoje aplicada em muitos, quase todos os processos – não apenas eleitorais – na Universidade. O Conselho da UFPA não admitiu que o novo dirigente máximo, o Magnífico, fosse eleito através da Lei dos 70%, mas tampouco deixou que fosse eleito pela democracia real, isto é, pelo voto universal, igual entre todos, sem a divisão imaginária e infundada de categorias componentes da Instituição. Entre docentes, discentes e técnicos administrativos há diferenças de função, apenas para que a máquina seja operada com maior organização e eficiência. Não há hierarquia, não há um ator que seja melhor ou pior que outro na cena institucional. Não há, portanto, privilégios que justifiquem diferenciação no voto. Todos podem interessantes dentro da função que desempenham. O detalhe é que o professor também é um técnico, não administrativo, mas se vale de técnicas para ensinar e pesquisar. E mais, quem administra os postos mais altos da Universidade são, geralmente, professores. Então o docente é, em alguma situação, técnico administrativo. Sendo assim seu voto bem poderia valer 15% em vez de 70%. O fato é que o espaço das IFES – onde há democracia para tudo, já que todos os postos para serem ocupados precedem de eleição, e ao mesmo tempo tal democracia é mascarada, fictícia – tornou-se o que se chama “A República dos professores”. Contrariando a ordem estabelecida, o Reitor da UFPA foi eleito pelo peso do voto dos técnicos administrativos reais (aqueles que não entram em sala, não fazem pesquisa e não assumem postos na alta administração universitária). O processo eleitoral foi encaminhado de forma paritária com o uso da fórmula matemática P=[(VD/UD)+(VT/UT)+(VA+UA)]x33% para a apuração, na qual P são os pontos obtidos pela chapa na consulta à comunidade; VD são os votos dos docentes na chapa; UD é o universo de docentes; VT são os votos dos técnicos administrativos na chapa; UT universo de técnicos; VA são os votos dos estudantes na chapa e UA universo de estudantes. Terminada a eleição, a apuração demonstrou que o eleito havia de ser o candidato, professor, que venceu apenas na categoria Técnicos Administrativos. É claro que na fórmula havia fortes impregnações ideológicas.
Não se usa fórmula para eleger o presidente da República (não a dos professores, a Federativa do Brasil mesmo), o voto da mulher não tem mais peso que o voto do idoso, que não tem mais peso por sua vez que o voto do jovem de 16 anos. O voto de um é o voto do outro. Pelo menos na forma de democracia, há na política geral a responsabilidade que não há na política acadêmica. Se em uma sociedade 80% do povo é protestante neopentecostal, o poder representativo democrático será direcionado ao sabor dessa esmagadora maioria. É bem provável que nessa sociedade as bandeiras defendidas pelas minorias – mulheres e homossexuais – jamais serão acatadas. É cruel, penoso, pode ser deprimente, mas será legítimo porque a democracia cobra seu preço. Trata-se de uma questão ética observada na perspectiva dos contextos. Sobre ato e ética, em Bakhtin, Sobral (In BRAIT, 2005, p. 31) lembra que
Não é por acaso que o ato para Bakhtin envolve essencialmente responsabilidade ética. O que é sim negável é que seja possível derivar compromissos éticos (da ordem da vida vivida) da verdade lógica de proposições morais (da ordem da abstração teórica e da generalização formal). Em Bakhtin, todo dever ético nasce em situação, ou seja, mantém a estrutura comum que compartilha com outros deveres éticos , mas se realiza de maneira específica, dependente da situação concreta.

Trata-se de um processo lento de convencimento a partir do livre debate de ideias, mas imediatamente cruel na hora de decidir por ser operado de acordo com a composição de forças.  No interior das universidades sempre haverá mais alunos que servidores (professores e técnicos). No entanto, os dirigentes não admitem que seja pago, por exemplo, o preço da eleição de um reitor por vias da democracia real. Daí inventam-se leis e fórmulas que ajudem a diminuir o risco que é 80% de uma universidade ser composta por estudantes. Também não pode um reitor ser eleito apenas pelos técnicos. Mas foi assim em 2008 na UFPA. Temos um reitor eleito pelos técnicos, estes que tem uma importância de apenas 15% segundo a Lei dos 70%. uma invenção criada pelos “anos de chumbo”.
Seguindo esse raciocínio, poderíamos dividir hipoteticamente a eleição do Luís Inácio Lula da Silva (PT) em três categorias: negros, mulheres e empresários. Seria presidente se ganhasse apenas na categoria dos empresários, infinitamente menor se comparada ao número de pessoas negras e pessoas mulheres que votam no Brasil? Na academia isso ocorre porque talvez seja menos complexo e mais controlável impor o arbítrio no meio acadêmico do que no meio dos povos, das grandes massas. Ao que parece há uma tendência constante ao conchavo entre os doutores, afinal eles tem seus “interesses”. Pode-se falar em rito de instituição
(...) é indicar que qualquer rito tende a consagrar ou a legitimar, isto é, a fazer desconhecer como arbitrário e a reconhecer como legítimo e natural um limite arbitrário, ou melhor, a operar solenemente, de maneira lícita e extraordinária, uma transgressão dos limites constitutivos da ordem social. (BOURDIEU, 1930, p. 98)

Como campo de produção do que é novo, do que pode transformar o mundo, ir à universidade só faz sentido se for para romper com a mesmice da vida e com o tédio do senso comum do pensamento único. Caso contrário, é melhor nem sair de casa. Os mesmos doutores que criticam o povo pela venda do voto a preço de muito pouco, por uma cesta básica, tijolos, uma blusa ou mesmo dinheiro em espécie, são os mesmos que são vistos em período de eleição de reitor negociando novos computadores para seus laboratórios, reforma física de prédios ou mesmo privilégios como bolsas e cargos. Salvando as devidas proporções, também se vendem por muito pouco. Ignoram os rumos das universidades, a conexão importante que ela deve à sociedade. Confundem-se com a mesmice. Interessante seria que se “colocassem no lugar do outro”, daquele que está “em lado oposto” na arena ideológica na qual o embate se dá em grandes centros acadêmicos, “promotores de conhecimento”. Bakhtin (1992, p. 52) trata da importância da alteridade para a realização ética:
A objetivação ética e estética necessita de um poderoso ponto de apoio, situado fora de si mesmo, de uma força efetiva, real, de cujo interior seja possível ver-se enquanto outro. — Na realidade, quando contemplo minha imagem externa naquilo que a faz viver e participar de um todo exterior vivo- pelo prisma dos valores da alma do outro possível, essa alma do outro, despojada de autonomia, essa alma-escrava, introduz algo de falso e de totalmente alheio ao acontecimento existência ético: não é uma geração produtiva e enriquecedora na medida em que carece de qualquer valor autônomo, é um produto fictício que turva a pureza óptica da existência; nesse caso opera-se como que uma substituição óptica, cria-se uma alma sem lugar, um participante sem nome e sem papel. É óbvio que não é pelos olhos de qualquer outro fictício que verei meu verdadeiro rosto; captarei apenas uma máscara.

Movimento estudantil: carnavalização no ato de resposta
            O italiano Antônio Gramsci define duas faces da prática política. A primeira é pequena política, efetivada no Brasil a base de todo fisiologismo e pragmatismo possível e imaginável. É a política de corredor, do “disse-me-disse”, da fofoca e da intriga. É o que fazem os partidos da ordem burguesa, que se perdem na vulgaridade do dia-a-dia, sem grandes causas, vendendo a alma de todo jeito por espaço em uma coligação política ou por vaga na máquina estatal que garanta prestígio e poder. Abre margem ainda para a corrupção, uma práxis quase natural no país. A segunda é a grande política, baseada na renúncia da preocupação excessiva com a coisa estatal, que busca contemplar os grandes temas e estimular os mais importantes debates públicos. É também a prática do intelectual engajado, uma nova perspectiva sobre o papel desse agente social, introduzida a partir do artigo J'accuse do romancista Émile Zola. A grande política coloca no centro da prioridade a caracterização honesta e a ação radical para reverter as demandas existentes, reprimidas e históricas.
            Ao longo da história política no Brasil – um espetáculo no qual desfilam escândalos e prejuízos de toda ordem – coube e cabe ao movimento estudantil fazer a grande política, afinal é a resposta esperada por todos aqueles que dela dependem para terem melhoria na qualidade de vida dentro dos espaços acadêmicos. Sempre presentes, estudantes nunca recuaram diante dos momentos cruciais – defesa do Petróleo para melhorar as condições de vida do povo brasileiro na era Vargas, ação contra a ditadura na clandestinidade, redemocratização pós-ditadura, combate à corrupção e por aí segue – e jamais renegaram como secundários os grandes temas do debate público e da vida pública. Para contrapor esse perfil, o movimento estudantil insurge como carnavalizante. Organiza sempre com ludicidade, criatividade e humor a crítica aos regimes e às ordens estabelecidas no país e nas reitorias. Entregar abacaxis aos reitores; organizar um grande beijaço na porta do restaurante universitário para que várias pessoas do mesmo sexo se beijem na boca e assim declarem que são contra o preconceito; ocupar e dormir nos prédios da burocracia para impedir que os burocratas trabalhem, já que quando trabalham é contra as necessidades urgentes dos povos; fechar ruas; jogar lama na porta de órgãos envolvidos em corrupção; acabar com o silêncio assoprando estridentes apitos a fim de ser ouvido pelo outro opressor, enfim. Com essa performance os estudantes conseguem romper regras e tabus, ridicularizar, desobedecer a tudo que seja oficial, tendo um horizonte social de renovação, no tempo de um futuro incompleto. Arrisca-se afirmar que, mecanicamente, os estudantes são o melhor da área educacional, o mais firme porque tem capacidade intacta de se indignar e se mover, não se contaminam por interesses particulares visando cargos, prestígio e poder. Carnavalizando, o movimento estudantil, por fora da União Nacional dos Estudantes – entidade hoje chapa branca, cadeia de transmissão do Governo Federal – segue mantendo o que há de mais importante no pântano das palavras pequenas: a articulação das contrapalavras.

Referências
BAKHTIN, M. Estética da Criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Linguísticas: O que Falar Quer Dizer. 2. Ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998.
Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso – GEGe. Palavras e Contrapalavras: Glossariando conceitos, categorias e noções de Bakhtin. São Carlos: Pedro & João Editores, 2009.
SOBRAL, Adail. Ato/atividade e evento. In.: BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: contexto, 2005.


[1] Rafael Saldanha é acadêmico de Letras Habilitação em Língua Espanhola da UFPA. É coordenador geral do Diretório Central dos Estudantes da UFPA (DCE).

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