quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Bruna Sola Ramos

A Conferência Nacional de Educação: espaço de “respostas responsáveis”?
Bruna Sola Ramos
DECED/UFSJ


(...) a responsabilidade abarca, contém, implica necessariamente a alteridade perante a qual o ato responsável é uma resposta. Somos cada um com o outro na irrecusável continuidade da história. Buscar nos eventos, nas singularidades, nas unicidades dos atos desta caminhada como se realizam as “respostas responsáveis” é um modo de reencontrar os deslocamentos imperceptíveis na construção continuada dos valores, dos sentidos que regem, mas que se fazem e se desfazem na existência.
Wanderley Geraldi

Fundamentada na perspectiva bakhtiniana, proponho neste pequeno texto a re-composição de quatro cenas que tiveram lugar na Conferência Nacional de Educação[1], como modo de trazer ao debate inquietações que subsistem ao discurso da “intensa participação da sociedade civil, de agentes públicos, entidades de classe, estudantes, profissionais da educação e pais/mães” na Conferência realizada (CONAE, 2010, p.10).
Em textos oficiais e nas notícias veiculadas na mídia em geral, visibilidade é dada à CONAE como “espaço democrático de construção de acordos entre atores sociais que, expressando valores e posições diferenciadas sobre os aspectos culturais, políticos, econômicos, apontam renovadas perspectivas para a organização da educação nacional” (ibid., p.9). A CONAE aparece, assim, sob o signo da participação e do diálogo, ingredientes-chave de uma proposta que se pretende democrática.
Como observadora da conferência, realizando aí trabalho empírico de meu doutoramento, revisito algumas cenas que polemizam a abertura para o diálogo entre as diferentes vozes sociais, na tentativa de problematizar o suposto espaço de “respostas responsáveis” gerado entre o governo e a sociedade – esta representada por seus delegados – para a definição dos rumos da educação nacional.
  Diante de um acontecimento de crucial importância para a percepção das lutas ideológicas em torno da educação, cabe-nos questionar qual é o lugar dado à réplica, à contrapalavra, para que seja possível que os “valores e posições diferenciadas” circulem na arena discursiva e mostrem suas feições. Colocando em suspenso a lógica do próprio diálogo estabelecido na Conferência, espero provocar nossa compreensão para o modo como se constituem as “respostas responsáveis” neste espaço, na busca por reencontrar alguns deslocamentos (quase) imperceptíveis de sua natureza responsiva.  

CENA 1 – Cada voz em seu “lugar”?

“O que eu posso dizer, da parte do Ministério da Educação, é de que nós vamos nos colocar nessa conferência muito mais como ouvintes do que como participantes, para servir de correia de transmissão entre a vontade da sociedade que elegeu seus delegados e a vontade da sociedade que elegeu seus representantes no Congresso Nacional”.
(Fala do Ministro Fernando Haddad, em Conferência de Abertura da CONAE, em 29/03/2010).

Com a fala transcrita recuperamos a sessão de abertura da Conferência Nacional da Educação, quando os representantes da sociedade civil – declarados parceiros e interlocutores no evento – foram alocados no “pano de fundo” da cena principal. Em primeiro plano, compondo a mesa solene, executivos do governo, parlamentares e ministros dividiram seus tempos de fala entre o elogio aos méritos do governo e o reconhecimento do esforço empreendido por trabalhadores, estudantes e pesquisadores da Educação. Mas os diferentes representantes da sociedade convidados ao diálogo não foram ouvidos na solenidade. Para além da voz oficial, apenas o silêncio das outras vozes presentes.
É possível, portanto, duvidar da pré-disposição do governo para “ouvir” a sociedade quando a disposição hierárquica dos sujeitos em cena e o cerceamento de seus atos de fala parecem contrapor-se à abertura suposta. Pois são pressupostos fundamentais de uma compreensão responsiva: a escuta que fala, que responde; e as vozes plenivalentes, ou seja, que mantenham, como participantes do grande diálogo, uma relação de absoluta igualdade com as outras vozes do discurso (BAKHTIN, 1981).

CENA 2 – Das vozes e vaias   
Professores escravos
Estavam a trabalhar
Tira a URP, deixa ficar
Guerreiros com guerreiros dizem URP, URP já!
Guerreiros com guerreiros dizem URP, URP já!

(Canto entoado durante manifestação ocorrida na CONAE, em 29/03/2010)

Um pouco antes da solenidade de abertura da Conferência, ao som de uma paródia de Escravos de Jó, professores, servidores e estudantes da Universidade de Brasília entoaram, a cantos e apitos, um protesto contra as ameaças de corte de 26,05% sobre seus salários, na tentativa de sensibilizar os quase 3.000 participantes do evento para as motivações da greve na UnB. Houve tumulto, confrontos com seguranças e uma entrada nada harmoniosa do grupo de manifestantes no auditório onde se realizaria a solenidade de abertura do evento.
Poderíamos imaginar que uma manifestação como esta, bem no início de uma Conferência que pretende “dialogar” sobre os planos da educação nacional, significa a lembrança de que seria preciso buscar uma síntese em que pesassem as tão justas reivindicações de nossos professores e estudantes. Mas a surpresa maior foi ver professores, alunos e servidores em manifestação serem recebidos no auditório por um coro de muitas vaias formado por sua plateia de “pares”. Diante do cenário que desestabilizava o pressuposto da “construção de acordos”, a coordenação do evento “optou” por “ceder” um breve espaço de fala aos manifestantes, para que expusessem suas reivindicações aos delegados presentes.
Com apoio em Bakhtin, assumo a percepção de que o diálogo se inscreve quando há afirmação do heterogêneo, do outro, das diferentes vozes que compõem um projeto discursivo comum. Mas a palavra cedida quase “à força” e o coro de vaias às vozes outras enfraquecem tal possibilidade.

Cena 3:  A “vez” da voz

 (Moderadora): O que nós podemos acomodar para não descumprir o regimento, não sermos antipáticos (...) é um minuto para fazer uma pergunta e não sei se alguém já notou no plenário, eu sou absolutamente rigorosa, um minuto eu vou ficar aqui dizendo “tempo, tempo, tempo, tempo” e deu dez e meia nós vamos embora e se, o que pode acontecer é nos ficarmos no prejuízo de não ouvirmos as considerações finais, que eu acho importantíssimo pra continuar fundamentando nosso debate na plenária. Um minuto para questão essas pessoas que já estão aqui e ponto. Pode ser assim? Mas é um minuto, um minuto. Eu só quero deixar claro, companheiras e companheiros, é que se ultrapassou um minuto, nós vamos pedir a essa pessoa o direito da fala.
A primeira delegada inscrita para o debate inicia sua fala:
(Delegada): (...) eu sou professora da Universidade Federal Rural da Amazônia e primeiro já gostaria de reclamar do tempo: se quatro dias são insuficientes... nós estamos aqui para fazer um debate e enquanto a educação for tratada desse jeito “nas coxas”, os problemas vão continuar existindo.
(Cena transcrita do Colóquio sobre Formação dos Profissionais da Educação e Educação a distância, ocorrido em 30/03/2010, na CONAE)

Um minuto. Este foi o tempo regulamentado para que os professores e demais representantes da sociedade civil pudessem dialogar com os convidados no Colóquio que discutia a Formação dos Profissionais da Educação e Educação a Distância na CONAE. Na cena transcrita, a professora-delegada faz uso de parte de seu já restrito tempo de fala para manifestar-se contra o modo como o debate foi considerado, reiterando a velha máxima de que “enquanto a educação for tratada desse jeito...” não devemos mesmo esperar por mudanças substantivas. Em seu discurso, a própria lógica do colóquio é colocada em suspenso. 
Delimitando contraposição ao trato dado ao diálogo, a professora constrói sua resposta responsável, em um espaço no qual esta (e tantas outras possíveis) parecem carecer de propósito. Tal fato me faz reavaliar a declaração expressa no Documento Final da CONAE (2010), que reafirma a construção democrática de um espaço social constituído para discussão da educação, manifestando a garantia dada ao “aprofundamento de questões e encaminhamentos debatidos pelos/as delegados/as, por meio de discussões teórico-práticas” (p. 11).
Concordo com a professora: se quatro dias são insuficientes... o que dizer de um minuto? Pensando pela via da poesia, Quintana (2006) nos faz crer que não se deveriam permitir nos relógios de parede esses ponteiros que marcam os segundos: eles nos envelhecem muito mais que esses ponteiros das horas. Considerando este precoce “envelhecimento” que os segundos trazem, como aprofundar, como fortalecer as atitudes responsivas frente ao dito, se não há tempo para a reflexão e para a crítica?
Bakhtin (2000) aposta na necessária coparticipação dos sujeitos no ato de compreensão, afirmando que a apropriação do discurso do outro não deve dar-se apenas no ato de reconhecer os enunciados por ele produzidos, o que apenas “duplicaria seu pensamento no espírito do outro” (p. 291), mas no manifestar-se ativamente na negociação de sentidos, recriando, reinterpretando e reconstruindo a palavra alheia, para então torná-la própria e significativa.  
Fundamentada pelo olhar bakhtiniano, e diante das sérias problemáticas que ocuparam as pautas da CONAE, penso que restringir o tempo de fala dos que foram “convidados” ao diálogo, para partilhar da construção de novos rumos, me parece não só uma descortesia, mas outro forte indício do enfraquecimento da responsividade suposta.


      
Referências

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981.

________. Estética da criação verbal. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
 
CONFERÊNCIA NACIONAL DE EDUCAÇÃO (CONAE), 2010, Brasília, DF. Construindo o Sistema Nacional Articulado de Educação: o Plano Nacional de Educação, diretrizes e estratégias; Documento Final. Brasília, DF: MEC, 2010.




[1] Conferência Nacional de Educação (precedida por etapas municipais, intermunicipais, distrital e estaduais), realizada entre 28 de março a 1° de abril de 2010, em Brasília.