segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Luciane de Paula e Natália Costa Custódio

Política do jeitinho brasileiro
Luciane de Paula[1]
Natália Costa Custódio[2]

“Cada pensamento meu, junto com o seu conteúdo, é um ato ou ação que realizo – meu próprio ato ou ação individualmente responsável [postupok]. É um de todos aqueles atos que fazem de minha vida única inteira um realizar ininterrupto de atos [postuplenie]. Porque minha vida inteira como um todo pode ser considerada um complexo ato ou ação singular que eu realizo: eu realizo, isto é, executo atos, com toda a minha vida, e cada ato particular e experiência vivida é um momento constituinte da minha vida – da continua realização de atos [postuplenie].” (BAKHTIN, 2010).

A palavra está ligada intimamente à vida (que, por sua vez, é social). Segundo Bakhtin (2003, p. 348),

“A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar do diálogo: interrogar, ouvir, responder, concordar, etc. Nesse diálogo o homem participa inteiro e com toda a vida: com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o espírito, todo o corpo, os atos. Aplica-se totalmente na palavra, e essa palavra entra no tecido dialógico da vida humana”.

Na vida, os sujeitos ganham, ou melhor, tomam a sua existência, por meio da linguagem. O homem é um ser de linguagem e esta, segundo o Círculo de Bakhtin, é um “organismo vivo”, uma vez que compreendida em ação, na comunicação, sempre ativa. Desse ponto de vista, nós, os sujeitos, somos dependentes uns dos outros e, devido a isso, precisamos de regras e leis que proporcionem o bem estar de todos. Refletir sobre essa temática é o nosso intuito. Por isso, escolhemos falar sobre líderes e governantes que honrem e respeitem aqueles que os elegeram, bem como a nação que representam.
Geralmente, chamamos de política a “ciência dos fenômenos referentes ao Estado” (primeira definição para o termo encontrada no Dicionário Aurélio, 2000) ou o sistema que organiza as regras e direitos de cada sujeito de uma nação. Na verdade, contudo, política é mais do que isso, existem as políticas empresariais, institucionais e outras que organizam as sociedades de maneira geral. O próprio dicionário traz dez (10) definições distintas para tal termo. A maioria se refere a atividades voltadas para o Estado, mas há também uma definição que se refere às ações cotidianas como ações políticas. Nossa intenção aqui é falar do conceito mais comum de política e da situação política no Brasil, tendo em vista o descontentamento geral dos brasileiros com aqueles que escolheram para representá-los no Governo: os políticos (prefeitos, ministros, deputados, senadores, vereadores, governantes e presidentes).
Ao refletirmos sobre a história desse país, observamos que, desde a nossa colonização, as formas administrativas e os administradores tratam das questões públicas com descaso, sempre mais interessados no bem de uma minoria rica, que pode oferecer recompensas pelos favores prestados, do que na maioria da população que os elegeram. É verdade que isso ocorre na maioria dos países (para não dizer em todos), mas, no Brasil, a política do favoritismo é alarmante.
Se prestarmos atenção, os maus costumes e as trapaças não estão presentes somente nos altos gabinetes e entre as importantes figuras públicas, pois reinam, absolutos, ao longo da história do país, há pelo menos cinco séculos, tanto que podemos notar, na nossa própria literatura, personagens populares que refletem e refratam a ideia do brasileiro como malandro e do “jeitinho” como típica forma de ação do brasileiro. Dois exemplos emblemáticos são Macunaíma (2000), o “herói sem caráter”, de Mário de Andrade; e o anti-heroi Leonardinho (Leonardo Pataca), de Memórias de um Sargento de Milícias (2011), de Manuel Antônio de Almeida.
Todavia, o maior prejuízo não é a má fama mundo a fora, mas sim o fato de educarmos nossa sociedade com essas trapaças, que reproduzimos e sem culpa, calcados no falso álibi de que “é assim mesmo”, “se todo mundo faz, também vou fazer” e assim por diante. Mais, aqueles que se recusam, por responsabilidade ética, a agir dessa maneira ou a serem coniventes com tal “mentalidade” são taxados de “Manés”. Alguns pequenos atos como exemplos: quando oferecemos suborno para não sermos multados, sonegamos impostos e até mesmo cortamos fila, agimos de forma irresponsável com a sociedade que nos cerca. Além de nos acostumarmos com esses “pequenos hábitos”, corroboramos para que, na esfera pública, os nossos Governantes ajam da mesma maneira, o que tem sido visto com naturalidade – e essa é a grande e pior questão, pois se banalizou o jeitinho como lei reinante e a exceção passou a ser regra. A política corrompida de hoje é reflexo dos valores sociais corrompidos que regem nosso país nas mais variadas esferas, o que inclui os nossos atos cotidianos. Trata-se de respostas de nossas respostas à ação não responsável de todos.
Segundo Geraldi,
“A responsabilidade abarca, contém, implica necessariamente a alteridade perante a qual o ato responsável é uma resposta. Somos cada um com o outro na irrecusável continuidade da história. Buscar nos eventos, nas singularidades, nas unicidades dos atos desta caminhada como se realizam as "respostas responsáveis" é um modo de reencontrar os deslocamentos imperceptíveis na construção continuada dos valores, dos sentidos que regem, mas que se fazem e se desfazem na existência.”. (2004, p. 229)

Podemos entender que dependemos uns dos outros na sociedade, somos constituídos pelo outro, como afirma Bakhtin, e nossas atitudes, quando responsáveis, refletem positivamente no outro. Assim, se agirmos de maneira politicamente responsável entre nós, cidadãos comuns, desenvolveremos nossa consciência e buscaremos, tanto quanto acompanharemos e cobraremos maior responsabilidade de nossos representantes no Governo. Toda ação (ou todo ato/atividade) gera uma reação, uma resposta ética, condizente com nossos valores e posturas políticas. Mudar o quadro político do país significa realizar uma necessidade preemente: uma mudança de mentalidade social. 
De acordo com BAKHTIN,
“a compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa (conquanto o grau dessa atividade seja muito variável); toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz: (...) o ouvinte que recebe e compreende a significação de um discurso adota simultaneamente, para com esse discurso, uma atitude responsiva ativa: ele concorda ou discorda (total ou parcialmente), completa, adapta, apronta-se para executar”. (2003, p. 290).

Essa atitude responsiva ativa implica uma ação concreta dotada de intencionalidade (isto é, não involuntária) praticada por alguém. Essa perspectiva é interpretada por Sobral (2005, p. 20), que destaca o caráter de ‘“responsibilidade’[3] e de ‘participatividade’ do agente que une responsabilidade - o responder pelos próprios atos - a responsividade, o responder a alguém ou a alguma coisa”
A partir dessa perspectiva é que defendemos um sujeito constituído nas práticas sociais concretas, por elas condicionado, mas também capaz de fazer escolhas, não qualquer uma, mas dentro das possibilidades permitidas pela objetividade; capaz de intervir na realidade e essa intervenção será tão mais adequada e eficaz quanto maior for o conhecimento que essa subjetividade tiver da objetividade posta.
Ao reagir a alternativas colocadas pela “realidade” social, o sujeito as aceita, delas discorda, modifica-as, retém certos elementos nela existentes e os transforma em novas perguntas para as quais vai procurar respostas. Essa atividade orienta a ação do sujeito, sem, no entanto, anulá-lo, pois concebido como um ser que responde ao seu ambiente, o sujeito assim age ao responder, em dado momento, em função dos limites e possibilidades que o contexto social lhe oferece. Essas respostas podem, no momento subseqüente, transformar-se em novas perguntas, e assim, sucessivamente, de tal modo que, tanto o conjunto de perguntas quanto o de respostas formam, gradativamente, os vários níveis de mediações que aprimoram e complexificam a atividade do homem, bem como enriquecem e transformam sua existência.
Na relação entre o mundo e o homem habitado pelo signo e ideologicamente marcado pelas estruturas sociais, em semiose na e pela linguagem, que os sujeitos se constituem. Por meio dessa relação se cria a possibilidade de modificação recíproca
Assim, a nossa intenção não é tirar a responsabilidade e a culpa das costas dos políticos por seus atos, colocando-os como vítimas, mas mostrar que suas atitudes corrompidas e corruptas são resposta ao modo de vida ao qual estamos acostumados, logo, também temos de nos responsabilizar por nossos atos para cobrar, depois, uma outra atitude e resposta do Governo. Afinal, como um filho pratica o que vê os pais fazendo, a classe política brasileira age como a nação está acostumada, num ciclo vicioso interminável. O primeiro passo para uma possível mudança deve ser dado na direção da valorização dos conceitos de regras, limites e exceções, na mente da população, em seus atos cotidianos, uma vez que todos se encontram ou se dizem desiludidos e não vêem outra perspectiva para o cenário político, mas precisam olhar reflexivamente para si e perceber o quanto as ações “rotineiras” reproduzem as ações dos políticos e vice-versa.
Pensar desse ponto de vista pede uma conceituação de sujeito. Segundo Sobral (2005, p. 22), para o Círculo de Bakhtin, “A proposta é a de conceber um sujeito que, sendo um eu-para-si, condição de formação da identidade subjetiva, é também um eu-para-o-outro, condição de inserção dessa identidade no plano relacional responsável, que lhe dá sentido”. Podemos ainda pensar no outro-para-mim, ao qual se refere Bakhtin (2010) como complemento dialógico dessa concepção. Ao refletirmos sobre o sujeito nessa perspectiva, uma outra concepção vem à tona, pois parte dela: enunciado, como unidade de análise das relações discursivas.
O enunciado, concreto para o filósofo russo, é responsivo porque a linguagem é heterogênea. A produção de um enunciado sempre responde a outros, já existentes (passados) e que virão-a-ser (futuro), como afirma Bakhtin (1988, p. 89): “todo discurso é orientado para a resposta e ele não pode esquivar-se à influência profunda do discurso da resposta antecipada”. Assim, o enunciado do “eu” já nasce como um “outro”, dada a sua responsividade, constituição típica da linguagem (dialógica):
“O enunciado está repleto dos ecos e lembranças de outros enunciados, aos quais está vinculado no interior de uma esfera comum da comunicação verbal. Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma ‘resposta’ aos enunciados precedentes de um determinado campo: ela os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subentende-os como conhecidos, de certo modo os leva em conta. Porque o enunciado ocupa uma posição definida em uma dada esfera de comunicação, em uma dada questão, em um dado assunto, etc. É impossível alguém definir sua posição sem correlacioná-la com outras posições. Por isso, cada enunciado é pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados, de outra esfera da comunicação discursiva.” (BAKHTIN, 2003, p. 297).

Para Bakhtin, a linguagem se concretiza em enunciado, via sujeito, que, para o filósofo russo, deve desenvolver sua consciência, que é engendrada pelas relações que os homens estabelecem entre si no meio social por meio da mediação da linguagem. A interação com o outro no meio social, portanto, tem um papel fundamental, pois “(...) sem ele (o outro) o homem não mergulha no mundo sígnico, não penetra na corrente da linguagem, não se desenvolve, não realiza aprendizagens, não ascende às funções psíquicas superiores, não forma a sua consciência, enfim, não se constitui como sujeito” (Freitas, 1997, p. 320). É justamente por meio das relações interpessoais que passamos a construir o mundo via linguagem.
Por isso, partimos da concepção etimológica do lexema “política” no início deste texto. Parece-nos que as pessoas entendem por política o que podemos denominar como “politicagem” – termo depreciativo que, segundo o dicionário (2000), pode ser compreendido de duas maneiras: “1. Política (4 a 7) mesquinha, estreita, de interesses pessoais” ou “2. O conjunto dos políticos poucos escrupulosos, desonestos”. Mesmo de maneira aparentemente estanque, a palavra, “em estado de dicionário”, como diria Drummond, demonstra o caráter dialógico da linguagem, uma vez que as duas definições do termo “politicagem” respondem à noção non sense de que a política é “mesquinha” porque voltada para “interesses pessoais”, ao mesmo tempo em que se refere a um sentido restrito do termo “política”: a classe de políticos. Não todos, mas os inescrupulosos e desonestos. A concepção estereotipada de política como irresponsável (a “política do jeitinho”) está tão cristalizada em nossa sociedade que o termo pejorativo que se refere a essas ações, dialogadas com a concepção de política como ato governamental, encontra-se legitimado pelo dicionário, o que significa que o valor (a ideologia) da “lei de Gerson”[4] já faz parte da cultura brasileira.
Logo, a política preocupada com a população verdadeiramente só ocorrerá no Brasil como resposta a uma mudança de mentalidade dos sujeitos (nós) que, se por um lado, são compostos pela sociedade, por outro, também a constituem. Assim, apenas por meio da mudança dos atos políticos cotidianos, a política governamental também poderá ser compreendida[5] de outra maneira, também responsável. Parece contraditório, mas não é: a política (governamental) é resposta (também política) aos atos políticos (cotidianos) – dissemos políticos e não “politiqueiros”. Se pensarmos que todos os atos são atos políticos, veremos que essa resposta deve partir de nós, da sociedade, em todas as esferas. Ao agirmos de maneira responsiva e responsável, consequentemente, elegeremos representantes com outro perfil, diferente do atual e, então, a política será realizada com responsabilidade e justiça, resposta às nossas ações.
Em outras palavras, a transformação política deve começar na sociedade. Se a sociedade for politicamente madura, teremos políticos maduros e responsáveis, e a política como sistema que visa o bem de todos, não só de uma minoria. Mas, para isso, todos temos de nos comprometer a pensar no outro, bem como acompanhar as ações dos governantes, para que façam o mesmo. Afinal, conforme Bakhtin (2004, p. 79), a enunciação “é produto da interação entre falantes e, em termos mais amplos, produto de toda uma situação social em que ela surgiu”. Se a política é ato e ato de linguagem (porque ato humano), ela pode (e deve, de nosso ponto de vista), ser considerada como ação cotidiana e sistêmica que deve ser encarada por todos como ação responsiva e responsável, ética. É preciso que todos estejam envolvidos na luta pela melhoria do país em todos os níveis e setores, do informal ao governamental.
 
Referencias Bibliográficas:
ALMEIDA, M. A. de. Memórias de um sargento de milícias. São Paulo: Ática, 2011.
ANDRADE, M. de. Macunaíma. Rio de Janeiro: Vila Rica, 2000.
AURÉLIO. Novo Dicionário – Século XXI – O dicionário da Língua Portuguesa. Versão 3.0. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
___. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João, 2010.
___. Questões de literatura e estética. São Paulo: HUCITEC, 1988.
BAKHTIN, M.M. / VOLOSHINOV. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997.
___. O Freudismo. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
FREITAS, M. T. “Nos textos de Bakhtin e Vygotsky: um encontro possível”. In: BRAIT, B. (Org). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.
GERALDI. “Alteridades: espaços e tempos de instabilidades”. In: NEGRI, L.; OLIVEIRA, R. P. de (Orgs.). Sentido e significação em torno da obra de Rodolfo Ilari. São Paulo: Contexto, 2004.          
MEDEIROS, C. M. de. “O Sujeito Bakhtiniano: um ser de resposta”. Revista da Faculdade de Seridó, v.1, n. 0, jan./jun. 2006.                                                                                         
SOBRAL, A. “Ato/Atividade e Evento”. In: BRAIT, B. (Org.) Bakhtin: Conceitos chaves. São Paulo: Contexto, 2005.


[1] Professora de Linguística da UNESP – Câmpus de Assis; GED; lucianedepaula1@gmail.com
[2] Graduanda de Letras da UNESP – Câmpus de Assis; FAPESP; GED; nat_custodio@hotmail.com
[3] Sobral utiliza-se do neologismo ‘responsibilidade’ em língua portuguesa com o objetivo de traduzir o termo russo otvetstvennost.
[4] No Brasi, a Lei de Gerson é um princípio. O princípio da vantagem pessoal, difundido, socialmente, como positivo. Assim, o que seria algo negativo – porque irresponsável e não ético – passou a ser valorizado às avessas, a fim de servir de possível “álibi” (impossível, para Bakhtin, uma vez que, para o filósofo russo, não há álibi para a existência) para ações de sujeitos que se aproveitam das mais variadas situações em benefício próprio, sem se importar com os “outros”. Além disso, a Lei de Gerson associa-se à disseminação da corrupção e ao desrespeito a regras de convívio para a obtenção de vantagens pessoais, nos mais diversos âmbitos – seja nos menores atos cotidianos (como furar uma fila) seja nas mais altas decisões Governamentais (a alteração de leis para o benefício de algum grupo, em especial).
[5]De acordo com Bakhtin (1988, p. 90), “A compreensão amadurece apenas na resposta. A compreensão e a resposta estão fundidas dialeticamente e reciprocamente condicionadas, sendo impossível uma sem a outra”. Assim, “a resposta compreensível é a força essencial que participa da formação do discurso e, principalmente, da compreensão ativa, percebendo o discurso como oposição ou reforço e enriquecendo-o” (BAKHTIN, 1988, p. 89).

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