segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Isaura Maria de Carvalho Monteiro

Brincando com a política: resposta para aliviar tensões?
Isaura Maria de Carvalho Monteiro
isaurammonteiro@uol.com.br
UFES
Esta reflexão tem como objetivo discutir brevemente uma temática constante nos textos de Bakhtin e seu Círculo: a imagem do “estar-entre”, que aponta sempre para uma concepção dialógica da cultura e da linguagem. Para Bakhtin, qualquer ato cultural é um ato responsivo e, sendo assim, localiza-se sempre em uma fronteira. Como tal, ao se analisar um texto, importante observar suas relações dialógicas, pois “o acontecimento da vida do texto, isto é, a sua verdadeira essência, sempre se desenvolve na fronteira de duas consciências, de dois sujeitos” (BAKHTIN, 2003, p. 311).
Na tentativa de estudar um texto político como um acontecimento de realidade social, mais uma vez foi escolhida uma charge de Amarildo[1] como ponto de partida da discussão.




Primeiramente, faz-se necessário situar histórica e socialmente a “arena” da charge. Pode-se dizer que o Brasil enfrenta na atualidade uma grande disputa federativa: a divisão dos bilionários royalties do petróleo da camada do pré-sal. O presidente do Congresso, José Sarney, decidiu pôr em votação, a partir de 15 de setembro de 2011, o veto do ex-presidente Lula à redistribuição dos royalties do petróleo (a lei tirava dinheiro do governo federal e dos estados beneficiados pelo pré-sal – Rio de Janeiro, Espírito Santo e São Paulo – e distribuía pelos demais estados da federação). A posição do atual governo federal é a de não aceitar a derrubada do veto de Lula. Com a perspectiva da redistribuição dos royalties pelos não produtores de petróleo, surge uma pressão para que o Senado vote pela derrubada do veto.
Dessa forma, instaura-se uma situação de perda econômica, especialmente para os estados do Espírito Santo e Rio de Janeiro, os maiores representantes da riqueza natural. Para os dois estados, é desvantajoso distribuir os royalties na mesma proporção entre as regiões que produzem e aquelas onde não há atividade petrolífera.
A charge mostra explicitamente a manifestação conjunta dos governadores Renato Casagrande (ES – PSB) e Sérgio Cabral (RJ – PMDB). A charge foi veiculada no jornal de maior circulação no estado do Espírito Santo, um dia após reunião realizada em Vitória com os dois representantes. No mesmo dia da publicação da charge, o jornal noticia que os dois governadores querem o empenho da presidente Dilma Roussef para evitar um possível impasse.
Delineada, então, a arena, é possível analisar, com Bakhtin, o que a charge evidencia como expressão dialógica e ideológica. Percebe-se que se estabelece um jogo de relações intermediado pelos signos verbais que apresentam sentidos próprios, intencionalmente criados pelo chargista. Nota-se que a expressão “medidas drásticas’ reveste-se de uma tessitura especial ao relacionar-se com a ação de iniciar verbalmente uma prece – “Ave Maria, cheia de graça” –, acrescida da imagem que mostra uma postura em genuflexão, reforçando um ritual religioso conhecido pela maioria.
A linguagem utilizada pelo autor revela um indivíduo livre em sua criação. Ver e compreender o chargista implica em ver e compreender outra consciência, a consciência do outro e seu mundo, isto é, outro sujeito:
[...] na explicação existe apenas uma consciência, um sujeito; na compreensão, duas consciências, dois sujeitos. Não pode haver relação dialógica com o objeto, por isso a explicação é desprovida de elementos dialógicos (além do retórico formal). Em certa medida, a compreensão é sempre dialógica (BAKHTIN, 2003, p. 316).

O enunciado da charge é compreendido quando se consegue estabelecer seus limites essenciais juntamente com a alternância dos sujeitos -  responsividade existente em qualquer compreensão. Assim, as vozes se transformam em indícios que, por sua vez, se concretizam na vida do texto, na sua inter-relação e interação. O enunciado da primeira cena (“Vamos nos reunir e tomar medidas drásticas / É isso aí”), quando confrontado ao segundo (“Ave-Maria... / Cheia de graça”), modifica o sentido total. Sobre os dois enunciados recaem os reflexos de outras vozes e neles entra também a voz do próprio autor. Dessa forma, a partir das referências constituídas, pode-se apontar uma linha ideológica que se apresenta: será que a decisão sobre os royalties está nas mãos de Dilma ou nas mãos de Deus?
Como consideração final, volta-se ao título deste trabalho – “Brincando com a política: resposta para aliviar tensões?” Pensa-se que as pressões e tensões continuarão a existir, a polêmica realmente está estabelecida: existe saída para esse impasse, esse jogo de interesses? Por outro lado, escolhe-se refletir com Bakhtin, afirmando que nenhuma palavra é fechada em seu sentido e que as regras, bem, as regras podem ser mudadas...

Não existe a primeira nem a última palavra, e não há limites para o contexto dialógico (este se estende ao passado sem limites e ao futuro sem limites). Nem os sentidos do passado, isto é, nascidos no diálogo dos séculos passados, podem jamais ser estáveis (concluídos, acabados de uma vez por todas): eles sempre irão mudar (renovando-se) no processo de desenvolvimento subsequente, futuro do diálogo [...] (BAKHTIN, 2003, p. 410).


REFERÊNCIA
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes [1979], 2003.



[1] Amarildo Lima, capixaba, trabalha há 22 anos no Jornal A Gazeta do Espírito Santo como chargista e editor de ilustração. Em 2010, a autora do presente texto enviou para As Rodas o trabalho “Ato responsável – postupok: o pensamento participativo de um sujeito em tempos de Copa do Mundo e eleição para presidente do Brasil”, discussão que partiu também de uma charge do referido autor.

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