segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Fábio Cardoso dos Santos

A Charge como atitude Responsiva
Fábio Cardoso dos Santos
Doutorando pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, no programa de Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem - LAEL

O homem na arte é o homem integral.
Mikhail Bakhtin

O tema Política como Ação Responsiva, sendo um dos eixos que norteiam o evento Encontros de Estudos Bakhtinianos 2011, a partir de um dos termos-chave do círculo de Bakhtin, que tem nos intrigado e sido objeto de nossas pesquisas, apresenta-se como um instigante desafio ao abordar o ato Responsável na Educação,  na Estética e na Política. Propomos, assim, levar o leitor a uma leitura mais significativa da charge política, a fim de propiciar-lhe o entendimento dos sentidos que a constitui. Para procedermos à leitura desse gênero discursivo em que a linguagem verbal e a visual se imbricam, vejamos como se constitui etimologicamente a palavra charge. Segundo o dicionário Houaiss (2001), ela advém do latim carricare, passa para o francês como carga, datada do século XII, e por extensão de sentido como: “o que exagera o caráter de alguém ou de algo para torná-lo ridículo, representação exagerada e burlesca, caricatura, regres. de charger – carregar”. Ainda no Houaiss, define-se como um substantivo feminino: “desenho humorístico, com ou sem legenda ou balão, geralmente veiculado pela imprensa e tendo por tema algum acontecimento atual, que comporta crítica e focaliza, por meio de caricatura, uma ou mais personagens envolvidas”. Trata-se de elementos dos quais as charges são constituídas.
A charge deve ser compreendida como uma representação humorística, caricatural e de caráter político, satirizando um fato específico da sociedade. Destarte, é herdeira da caricatura e, embora tenha mudado de nome, dá continuidade a seu significado e função. Com relação à função social atribuída à charge, concordamos com a citação de Agostinho, segundo a qual a charge se constitui realidade inquestionável no universo da comunicação, dentro do qual não pretende apenas distrair, mas, ao contrário, alertar, denunciar, coibir e levar à reflexão (AGOSTINHO, 1993, p. 229).
Destacamos, na charge, a presença do humor, elemento comum que perpassa todas as formas de linguagem. Podemos considerar também a efemeridade da charge, que geralmente é esquecida diante dos acontecimentos da sociedade, mas permanece viva como memória histórica. Cagnin define-a como o desenho que se refere a fatos acontecidos em que agem pessoas reais, em geral conhecidas, com o propósito de denunciar, criticar e satirizar (CAGNIN, 19--).
Há outra característica da charge: constituir-se como instrumento de persuasão, intervindo, dessa forma, no processo de definições políticas e ideológicas do receptor, por meio da sedução pelo humor, e criando, assim, um sentimento de aceitabilidade que permite um processo de mobilização e reflexão diante dos fatos da sociedade. Segundo Cagnin, cabe à charge:
expor uma ideia, dissertar sobre um tema. Ainda que esteja ligada a um fato ou acontecimento e o represente de alguma forma, sua preocupação, ou do chargista, não é o acontecimento, mas o conceito que faz dele, ou mais comumente a crítica, a denúncia do fato, quando não procura aliciar o leitor para os seus arrazoados princípios, programas ou ideologia. (CAGNIN, 19--).
Como característica composicional a maioria das charges vem acompanhada de textos ou palavras, uma vez que o elemento linguístico se torna constitutivo de significados para explicitar e registrar sua intencionalidade ou compor o sentido humorístico e político. A charge, de acordo com Agostinho (1993, p. 228), se dirige
à ação do indivíduo dentro do social e, como consequência, necessita de vários elementos gráficos para se materializar, tais como: cenário, espaço, perspectiva, movimento, onomatopéias e, às vezes, texto verbal para completar a ação ou para dar voz aos personagens (AGOSTINHO, 1993, p. 228).

O gênero discursivo charge, segundo Bakhtin, pertence à categoria dos gêneros secundários, é uma arte e uma criação complexa, que depende de identificação imediata do leitor. Para Bakhtin (2003, p. 271), esses gêneros complexos, secundários,  suscitam no leitor uma “atitude responsiva” que pode ser “imediata ou de efeito retardado”, pois, ao perceber ou compreender o significado (linguístico) do discurso, ocupa frente a ele uma posição responsiva. Pode refutá-lo, acatá-lo, usá-lo. Essa posição responsiva é formada no decorrer do processo de compreensão do enunciado. (BAKHTIN, 2003, p.271)
Ainda em relação aos gêneros discursivos secundários, Bakhtin afirma que
Os gêneros discursivos secundários (complexos – romances, dramas, pesquisas científicas de toda espécie, os grandes gêneros publicísticos, etc.) surgem nas condições de um convívio cultural mais complexo e relativamente muito desenvolvido e organizado (predominantemente o escrito) – artístico, científico, sociopolítico, etc. No processo de sua formação eles incorporam e reelaboram diversos gêneros primários (simples), que se formaram nas condições da comunicação discursiva imediata. (BAKHTIN, 2003, p. 263). 

No gênero discursivo charge, a palavra e a imagem estão imbricadas, pois sua leitura implica a leitura de dois tipos básicos de linguagens: a verbal e a visual. Naturalmente, a linguagem verbal configura-se pelo uso de palavras e frases, e a visual pelo uso de outros recursos, como desenhos, representação de expressões corporais e faciais, etc. A entonação e a modulação da fala dão-se, também, por meio de recursos gráficos, como letras maiúsculas, tremidas, pontilhadas, etc. As cores são igualmente significativas e podem acrescentar sentidos às personagens e às palavras, enquanto as letras (grafemas) podem também ser carregadas de significação por meio da forma como são representadas: fontes diversas, tremidas, grandes, tombadas, etc. Todos esses elementos misturam-se e completam-se no ato de decodificação da mensagem pelo outro. Assim o verbal e o visual imbricam-se e, segundo Brait:
ao se ler um outdoor, um cartaz, uma charge, não se pode, de modo algum, ignorar toda informação que o visual traz, como cores, figuras, distribuição gráfica, e que empresta à constituição de sentido do enunciado concreto desses gêneros em confluência com o verbal (BRAIT, 2005, p. 72).
Para que os leitores possam compreender os discursos, críticas, ironias, sátiras que estão impressas na charge política, os elementos verbais e visuais devem estar completamente ligados, pois devemos contextualizar e procurar relacionar imagem e texto  que são partes integrantes do processo de leitura que leva à compreensão do texto chargístico. Assim, é preciso que o leitor seja capaz de relacionar as imagens e o texto, para que ele consiga proceder a uma leitura profícua, estabelecendo relações com as ideologias impressas na charge, recuperando o sentido e os valores desses discursos imbricados na sua constituição.
Dessa forma, o leitor ao final da análise deve perceber que o chargista recupera as informações da mídia para que, em seguida, possa fundi-las e direcioná-las sob a criação do gênero, dando, assim, origem à charge. As charges são criadas com base nos acontecimentos diários veiculados nas esferas discursivas da sociedade e, cabe aos leitores lê-las e interpretá-las de maneira responsável. Acreditamos que a potencialidade da charge esteja no fato de conseguirmos depreender o sentido de como o chargista quis expressar e sintetizar os fatos veiculados na mídia com base em fusões e refrações adequadas, para que pudesse criar e comentar determinado fato político por meio do gênero chargístico.

REFERÊNCIAS
AGOSTINHO, Aucione Torres. A charge. 1993. 330 f. Tese (Doutorado)-Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1993.
AGOSTINHO, Aucione Torres. A charge. São Paulo: ECA/USP, 1993.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. Tradução de Michel Lahud ; Yara Frateschi. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2006.
______. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução Yara Frateschi Vieira. 6. ed.  São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.
______. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BRAIT, Beth. Ironia em perspectiva polifônica. 2. ed. Campinas: Unicamp, 2008.
______. Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. 2. ed. Campinas: Unicamp, 2005.
CAGNIN, Antonio Luiz. Os quadrinhos. São Paulo: Ática, 1975.
______. Carões, caras e caretas: salão de humor e de outros humores. [S.l.: s.n.], [19--]. Mimeografado.
HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

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