segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Márcia Helena dos Santos

O discurso pedagógico em interação com a linguagem literária:  uma incursão pelos pressupostos bakhtinianos.
Profa. Ms. Márcia Helena dos Santos
 Universidade Presbiteriana Mackenzie
                                                               
“Toda compreensão é prenhe de respostas e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz: o ouvinte torna-se o locutor.”
“Não há nada morto de maneira absoluta. Todo sentido festejará um dia seu renascimento.”
                                                                                        
  A postura de educador, numa linha discursiva, deve procurar condições que visem emergir a pluralidade de leituras e propiciar situações em que se possa questionar o conteúdo de seus textos. Adotando-se essa postura, buscam-se reflexões sobre as atividades de leitura de enunciados de texto literário em sala de aula como prática social.
  Nesse contexto escolar, o discurso pedagógico deve se pautar em duas de suas características: a argumentativa e a polêmica. Esta por ser instigante, e aquela pelo seu dialogismo e  pela sua democracia possibilita o diálogo, a troca de experiências, a presença de ponto de vista divergente no contexto de sala de aula. Esse discurso se faz necessário principalmente em atividades de leitura, pois permitirá o diálogo entre autor-texto-leitor, em que o aluno poderá fazer inferências, levantar hipóteses, e  construir os sentidos no texto. Essa troca de experiências não deixa que “o professor perca de vista seu objetivo que é ensinar e o do aluno que por sua vez busca a ação de aprender.” (Vasconcelos, 2009, p.14).
Pode-se trabalhar a linguagem literária como arte, a qual permite uma nova descoberta a cada olhar em suas duas faces indissociáveis: a estética, no nível da expressão; e a ideológica ou temática, no do conteúdo. São esses dois aspectos que permitem, em sala de aula, fazer uso dela na construção dos sentidos dos enunciados no texto, para que se possa enxergar a literatura não somente pela estética, mas também como veículo de conteúdos temáticos e ideológicos,  que se revelam com precisão na complexa dinâmica homem-mundo.
Há alguns professores que criticam o texto literário em atividades de leitura em contexto escolar, por seu aspecto plurívoco. No entanto, esquece-se de que todo texto possui inúmeras portas por onde se  adentra de acordo com os óculos sociais de cada leitor, os quais são ou não capazes de identificar as marcas textuais presentes na obra. E, se o professor  possuir criatividade, saberá não só explorar, no âmbito do ensino, com inúmeras atividades, essa linguagem plurivalente inerente a todo texto literário, mas também “apreciar o poder dessa linguagem na recriação e problematização do mundo” (Pereira, 2009, p.67).
Nesse campo fértil dos textos literários, possibilita-se o trabalho com os aspectos cognitivos, que levam o leitor a alcançar proficiência em leitura, como: localizar informações explícitas, reconhecer o tema principal ou a proposto do autor, inferir informações, compreender relações, construir sentido e conexões entre os textos, integrar e ordenar várias partes de um texto para identificar a ideia principal, compreender o sentido de uma palavra ou de uma frase e construir relações, comparações, explicações ou avaliações sobre um texto.  Atividades, portanto, que poderão encontrar campo fértil no texto literário, uma vez que o signo é, por natureza, vivo e móvel, plurivalente, ideológico. Nele se pode encontrar uma multiplicidade de vozes e de leituras (Barros, 1994).
Ainda que seja um desafio enveredar pelos caminhos da leitura do texto literário, deve-se considerá-lo uma ferramenta para o ato de ler como prática social, a qual permite ao indivíduo ser um sujeito agente na sociedade em que vive.; pois possibilita ao leitor mergulhar em diversas culturas,  fazer novas descobertas sobre si e sobre o outro. A este respeito, Bakhtin (1997, p.41) assevera que
Considerando-se que a leitura
A leitura está penetrada literalmente em todas as relações entre os indivíduos, nas relações de colaboração, nas de bases ideológicas, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relações de caráter político. Então, limitar a nossa leitura àqueles textos coincidentes com nossas crenças, idéias e opiniões é limitar desnecessariamente uma atividade cujo grande mérito é o fato de nos permitir o acesso a outros mundos, além daqueles acessíveis por meio da experiência direta. (BAKHTIN,1997, p.41)

À luz dessa teoria,  sabe-se que a linguagem penetra na vida por meio de enunciados concretos e, ao mesmo tempo, pelos enunciados, a vida se introduz na linguagem e  transcende o lingüístico, pois eles são sócio-constituídos e também o é o sentido que não pode ser controlado como se fosse um objeto contido no texto. Além disso, é importante ressaltar que, conforme Fiorin (2006),  o conteúdo não é o assunto específico de um texto temático, mas é um domínio de sentido de que se ocupa o gênero.  Neste domínio deformam a cadeia da comunicação discursiva. Enunciados estes sempre plenos de tonalidades dialógicas.
 O leitor deve participar de um diálogo com enunciados de texto literário,mobilizando o que lê e dando a essa leitura uma resposta ativa. Isso torna sua leitura singular.  Segundo Fiorin (op. cit.), o leitor ou ouvinte, ao compreender um enunciado, adota, ao mesmo tempo em relação a ele, uma atitude responsiva ativa: concorda com ele parcial ou totalmente, discorda dele, completa, adapta-o. Toda compreensão é carregada de respostas.
    Os seres humanos utilizam-se da linguagem na forma de enunciados em determinadas esferas de atividades (as da escola, as do trabalho, as da família). Esses enunciados só são produzidos dentro dessas esferas de ações, o que se permite dizer que eles são  constituídos pelas condições específicas e pelas finalidades de cada esfera. Uma leitura sob esses óculos mostra que a utilização da língua elabora tipos relativamente estáveis de enunciados.
Segundo Bakhtin (2003), os gêneros são tipos de enunciados relativamente estáveis, que possuem uma riqueza e variedade infinita, visto que as possibilidades da ação humana comportam um repertório significativo de gêneros do discurso. E também há de se considerar que o campo da comunicação discursiva tem a sua concepção típica de destinatário. Fala-se sempre por meio de gêneros no interior de cada esfera de atividade.
Assim a atividade de leitura como prática social deve propiciar ao leitor uma compreensão do uso dos enunciados na construção de todo texto. Isso porque, como assevera Bakhtin (op.cit., p.297)
As pessoas não trocam orações, assim como não trocam palavras (numa acepção rigorosamente lingüística), ou combinações de palavras, trocam enunciados constituídos coma ajuda de unidades da língua [...]
        
Isso se reflete em nossos atos, em nossas palavras. Nenhuma palavra é “neutra” mais inevitavelmente “carregada”, “ocupada”, “habitada”, “atravessada” pelos discursos nos quais viveu sua existência socialmente sustentada (AUTHIER-REVUZ, 1990, p.27).
A  palavra, conforme Stella (2008, p:177), apresenta quatro propriedades definidoras: pureza semiótica, possibilidade de interiorização, participação em todo ato consciente, neutralidade. A pureza semiótica refere-se ao seu valor como signo ideológico dentro de uma esfera. A interiorização dá-se no confronto entre as palavras da consciência e as palavras do mundo exterior. A participação em todo o ato consciente,  a palavra  funciona pela interpretação e compreensão do mundo do sujeito e também de seus valores exteriores nas esferas ideológicas. A neutralidade é de que a palavra pode assumir qualquer função ideológica dependendo da maneira como ela é usada em determinado enunciado. Como signo, recebe sempre uma carta significativa a cada momento de seu uso.  A palavra é, pois, sempre impregnada de uma expressividade do seu enunciador quando usada numa determinada situação, com uma intenção discursiva.        
As atividades de leitura com textos literários, ancoradas nos pressupostos bakhtinianos, possibilitam ao leitor romper, enquanto processo discursivo, a linearidade do texto, transgredindo-o, desconstruindo-o e construindo-o, a fim de que se possa dar a cada enunciado um novo sentido.

REFERÊNCIAS
AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Tradução de Celane M. Cruz e João Wanderley Geraldi. Cad. Est. Ling., Campinas,SP (19):p.25-42,jul./dez.1990.
BAKHIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 8. ed. Trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira.  São Paulo: Hucitec, 1997.
_________________.Os gêneros do discurso. Estética da Criação Verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pp. 261-306.
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Dialogismo, Polifonia e Enunciação. In:________; FIORIN, José Luiz (Orgs.) Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade: em torno de Bakhtin. São Paulo: Edusp, 1994 (Coleção Ensaios de Cultura).
FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin.1ª ed., São Paulo: Ática, 2006.
PEREIRA, Helena Bonito Couto. Em Confluência: literatura, cinema e ensino. In: VASCONCELOS, Maria Lucia M. Carvalho & PEREIRA. Helena Bonito Couto (Organizadoras). Niterói: Intertexto, 2009.
STELLA, Paulo Rogério. A palavra. In: BRAIT, Beth. (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 4. ed., São Paulo: Contexto: 2008.
VASCONCELOS, Maria Lucia M. Carvalho. Docência: discurso e ação. In: VASCONCELOS, Maria Lucia M. Carvalho & PEREIRA. Helena Bonito Couto (Organizadoras). Linguagens na sala de aula do ensino superior. Niterói: Intertexto, 2009

Um comentário:

  1. Márcia, adorei o texto. Hoje em dia temos visto pessoas "alfabetizadas" que não entendem o que estão lendo. Praticando essas suas idéias teríamos a solução para isso e uma abertura muito grande para motivar outros conhecimentos.
    Gostei muito

    Manoel

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