segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Camila Caracelli Scherma

Discursos sobre o agronegócio: questões de hegemonia e lutas ideológicas[1]
Camila Caracelli Scherma
caracellischerma@bol.com.br
Universidade Federal de São Carlos – UFSCAR

“’O estilo é o homem’, dizem; mas poderíamos dizer: o estilo é pelo menos duas pessoas ou, mais precisamente, uma pessoa mais seu grupo social na forma de seu representante autorizado, o ouvinte – o participante constante na fala interior e exterior da pessoa” (Bakhtin/Voloshinov, 1976).

  1. A questão que moveu a pesquisa
                        A força constitutiva dos discursos na preparação, justificação, manutenção e fortalecimento de ações na base material da sociedade – infraestrutura – moveu o trabalho de pesquisa do curso de Mestrado, intitulado “Discursos, hegemonia e agronegócio: tensão e luta de classes no contemporâneo”. Mesmo pautado nas atividades econômicas ligadas à produção agrícola e pecuária em larga escala – o chamado agronegócio – o objeto deste trabalho é, antes de tudo, a linguagem, os discursos, as inter-relações que se travam por enunciados concretos. O ponto de partida é, desse modo, o texto, uma vez queonde nãotexto nãoobjeto de pesquisa e pensamento” (Bakhtin, 2003, p. 307).
            No estudo desses textos, desses discursos coletados nas mais diversas esferas de atividade, interessou-nos a luta, o embate que se trava nas palavras; uma luta discursiva, que diz respeito aos interesses de classe.     Trabalhamos com a hipótese de que os investimentos direcionados ao agronegócio (e toda a organização desse campo de atividade) são sustentados e justificados por discursos ideologicamente construídos para a manutenção e fortalecimento da atual ordem das coisas, numa tentativa das classes dominantes de tornar os discursos monovalentes (ideologia oficial). Tais discursos exercem um papel de criar e manter uma aparência de que o Brasil está se inserindo no contexto da economia mundial, com importante papel.
            No entanto, a dialética interna do signo “agronegócio” revela as contradições, poistambém a construção de discursos não-hegemônicos que contestam a atual ordem das coisas, fazendo emergir as contradições, desestabilizando essa hegemonia, subvertendo a atual ordem e revelando o caráter deformador dos signos e, por meio deles, as contradições de classe no atual período, afirmando que a produção de commodities agrícolas apenas reforça a histórica função do país na divisão internacional do trabalho, além de atender a uma lógica financeira e de mercado.
            Com isso, nos propusemos a responder à questão: como discursos coletados em diversas esferas de atividade humana mostram o funcionamento das ideologias e seu constante embate sígnico a partir de ações na base material da sociedade e do território?

  1. Percurso traçado para o desenvolvimento da pesquisa
            O caminho traçado por nós neste trabalho perpassou discursos produzidos nas mais diversas esferas de atividade humana, em busca de compreender como as ideologias que compõem esses discursos e como as diversas manifestações sobre as ações em torno do agronegócio revelam os interesses das diferentes classes sociais envolvidas nesses embates, que são embates discursivos.
            Essa luta nos signos também foi analisada por nós nos discursos encontrados em textos jornalísticos, sobretudo aqueles publicados no jornal Folha de S. Paulo e Brasil de Fato, em função de se constituírem a partir de destinatários distintos, com interesses distintos. O período de deflagração da mais recente crise financeira mundial foi o período em que esses dados foram coletados, posto que a luta discursiva embasada nos interesses de classe se intensifica em épocas de instabilidade. Não a crise financeira nos motivou nessa coleta, mas também uma crise social, uma crise territorial. Nas palavras de Bakhtin e Voloshinov, a “dialética interna do signo não se revela inteiramente a não ser nas épocas de crise social e de comoção revolucionária” (Bakhtin/Voloshinov, 2009, p.48).
            O estudo desses dados foi embasado na obra de Bakhtin e do Círculo, de maneira que, como afirmam no livro Marxismo e Filosofia da Linguagem, além de analisarmos o nosso objeto do ponto de vista do conteúdo, pudéssemos fazê-lo também “[...] do ponto de vista dos tipos e formas de discurso através dos quais estes temas tomam forma, são comentados, se realizam, são experimentados, são pensados, etc.” (Bakhtin, 2006, p. 44). Observamos também as seguintes regras metodológicas propostas por Bakhtin/Voloshinov:

1. Não separar a ideologia da realidade material do signo (colocando-a no campo da “consciênciaou em qualquer outra esfera fugidia e indefinível).
2. Não dissociar o signo das formas concretas da comunicação social (entendendo-se que o signo faz parte de um sistema de comunicação social organizada e que não tem existência fora deste sistema, a não ser como objeto físico).
3. Não dissociar a comunicação e suas formas de sua base material (infra-estrutura) (Bakhtin, 2009, p. 45).
           
  1. Pontos principais de discussão
            3.1 Relação infra e superestruturas

            As relações, inter-ações, no meio onde elas se dão, na infraestrutura, na base material concreta, constituem embates ideológicos ao mesmo tempo em que são por eles constituídas. Mudanças sociais são, portanto, refletidas e refratadas pelos signos ideológicos constituintes dos discursos. Nesse processo todo, novas relações constituem novos discursos e esses também as transformam. Desse modo, foi pelo estudo da palavra, dos signos, dos discursos que estudamos as relações que se dão entre infraestrutura e superestrutura.                    Na busca pela explicitação das relações entre a organização do território brasileiro em função das atividades agropecuárias em larga escala (nomeadas muitas vezes de agronegócio) e as transformações ideológicas decorrentes desses processos, desembocamos num processo dialético de evolução social, “que procede da infra-estrutura e vai tomar forma nas superestruturas” (Bakhtin, 2009, p. 41).
           
3.2 Ideologias
            É importante ressaltar desde que as concepções de ideologia com as quais trabalhamos ao longo da pesquisa são aquelas propostas por Bakhtin e o Círculo[1]. Não compreendemos, portanto, ideologia como falsa consciência ou como uma visão relativista dos fatos, em que tudo é ideológico. Para situar nossa compreensão de ideologia, podemos citar Ponzio (2008), quando esclarece que,
para Bakhtin, o termoideologia” se emprega no sentido de ideologia da classe dominante, interessada em manter a divisão em classes sociais e em ocultar as reais contradições que tentam transformar as relações sociais de produção (ideologia como falsa consciência, como mistificação, como pensamento distorcido etc.), mas também é usado no sentido amplo que o termo assume, sobretudo a partir de Lênin, e que permite aplicá-lo tanto à “ideologia burguesa” como à “ideologia proletária” e à “ideologia científica” (esta última resultaria numa contradição de termos se partirmos da definição de ideologia em geral como falsa consciência) (Ponzio, 2008, p.115).

            Assim, o conceito de ideologia com o qual procedemos às análises é um conceito que assume esse termo não como uma visão de mundo, como opinião valorativa sobre as coisas, mas como tomada de posição diante delas, calcada nos interesses de classe, constituídos por ela e constitutivos dela, simultaneamente, e que “condiciona atitudes e comportamentos tanto dos sujeitos do grupo em questão como dos outros grupos sociais, quando se converte em ideologia dominante” (Ponzio, 2008, p.116).
            Tomar posição diante dos acontecimentos é construir discursos a partir das relações sociais que se estabelecem diante dos fatos. Os interesses de classes orientam a constituição ideológica desses discursos. Um mesmo fato que se dá na base material da sociedade é visto de maneiras distintas de acordo com quem os .
            A grande questão está em torno da hegemonia desses discursos que também é refletida e refratada nas ações da base material, da base socioeconômica. Aqueles discursos que são construídos com a finalidade de manter e fortalecer a atual organização das coisas, que tentam estabilizar as ações e as falas em torno delas, que tentam tornar as posições a respeito dessas ações monológicas, têm sido os discursos hegemônicos, posto que têm tido mais força, que têm determinado os detentores dos meios de produção, os detentores de terras, do comando da política e da economia. aqueles discursos que tentam subverter a atual ordem das coisas, que questionam, que põem em debate, que propõem mudanças, movimentos, constituem os discursos da não-hegemonia, posto que os que os proferem são aqueles que não detêm o poder, que não detêm o comando político e econômico, são os discursos com vozes destoantes daquelas que monologizam, são as vozes que instauram as instabilidade em oposição à estabilidade discursiva corrente na atualidade da esfera de atividade do campo, da agricultura e da pecuária brasileiras.

Considerações Finais
            A luta discursiva por nós estudada nesse trabalho constitui embates ideológicos que refletem uma realidade de conflitos e tensões, dentro da qual convivem diferentes sujeitos, organizados em diferentes classes sociais que, com base nos seus interesses, lançam-se na arena discursiva, lutando, ora pela manutenção da atual ordem das coisas, ora pela subversão dessa mesma ordem.
            A tensão constitutiva dos discursos e constituída por eles está no fato de que há a construção de uma imagem do Brasil como grande promessa internacional de desenvolvimento; no entanto, há discursos outros que afirmam que os esforços nessa direção não passam de trabalho para manter uma posição historicamente consolidada de um Brasil que é fornecedor de matérias-primas a baixos preços e que usa de seus vastos, mas finitos, recursos para isso.
            O estudo dos signos, dos discursos, um estudo feito, portanto, pelas lentes da linguagem, nos permitiu construir compreensões acerca da base material da sociedademais especificamente na esfera do agronegócio. As palavras refletem e refratam as ações, os fatos, os acontecimentos, de acordo com os projetos de dizer de cada sujeito ou de cada classe social, não porque tais ações ou fatos são o que são, mas porque os sujeitos que a elas se referem discursivamente são o que são. Desse modo, o alargamento dos estudos linguísticos e discursivos, buscando neles os embates entre estabilidade e instabilidade nos permite pegar nos discursos, além das lutas ideológicas, a vida.

Referências Bibliográficas
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. 4ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN/VOLOSHINOV. Discurso na vida e discurso na arte. Tradução de Cristóvão Tezza. Nova York: Academic Press, 1976.
______. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. 13 ed. – São Paulo: Hucitec, 2009. [1929]
MIOTELLO, V. Os interlocutores de Bakhtin. Linguasagem, v. 2, p. 1-5, 2008. Disponível em: <http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao02/02c_vm.php>. Acesso em: 17/01/2011.
______ . Círculos de Bakhtin I. Linguasagem, v. 5, p. 01-06, 2009a. Disponível em: <http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao05/col_cb.php>. Acesso em: 17/01/2011.
______ . Círculos de Bakhtin II. Linguasagem, v. 7, p. 01-05, 2009b. Disponível em: <http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao07/coluna_conversando.php>. Acesso em: 17/01/2011.
PONZIO, Augusto. A Revolução Bakhtiniana: o pensamento e a ideologia contemporâneaSão Paulo: Contexto, 2008.

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