segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Ednalva Gutierrez Rodrigues

POLÍTICA DE EDUCAÇÃO BILÍNGUE E A ALFABETIZAÇÃO DE CRIANÇAS SURDAS
Ednalva Gutierrez Rodrigues
Universidade Federal do Espírito Santo

RESUMO
O presente artigo tem como foco discutir o projeto de implantação de escolas referência da Secretaria Municipal de Educação de Vitória, ES, materializado no documento “Educação Bilíngue: ressignificando o processo socioeducacional dos alunos com surdez, no Sistema Municipal de Ensino de Vitória, por meio do ensino, uso e difusão da LIBRAS”.  A partir dos conceitos de responsividade e enunciação, a análise busca refletir sobre os discursos presentes no documento e de que forma as relações dialógicas estabelecidas com outros discursos determinam e conformam as práticas de atendimento aos alunos surdos matriculados em turma de alfabetização.

1 – INTRODUÇÃO

Um dos grandes desafios na educação de surdos refere-se à alfabetização. Muitos surdos desejam aprender a ler e a escrever, porém acham que esse é um desejo inatingível. Considerando que a surdez não tem influência direta na aprendizagem, podemos inferir que o fracasso na escolarização do surdo está profundamente relacionado com as práticas pedagógicas que não consideram as necessidades das crianças surdas e o não uso da língua sinais pelo professor para mediar os processos de aprendizagem.

Com o objetivo de ressignificar o atendimento aos alunos surdos do município de Vitória, ES, a Secretaria Municipal de Educação (SEME) implementou o projeto denominado “Educação Bilíngue: ressignificando o processo socioeducacional dos alunos com surdez, no Sistema Municipal de Ensino de Vitória, por meio do ensino, uso e difusão da LIBRAS”, que tem como objetivo:
Implementar uma ‘ Política de Educação para Alunos com surdez’ no Sistema Municipal de Ensino de Vitória, atendendo as Diretrizes da atual Política Nacional de Educação Inclusiva, garantindo a implantação de um projeto educacional bilíngue, respeitando a experiência visual e linguística do aluno com surdez no seu processo de ensino-aprendizagem, utilizando a LIBRAS e a Língua Portuguesa escrita como segunda língua, resguardado o direito de opção da família ou do próprio aluno pela modalidade oral da língua portuguesa (VITÓRIA, 2008, p. 6).

Em nossa perspectiva, esse documento é um importante mediador semiótico, pois articula diferentes vozes que o atravessam, situadas em diferentes contextos sociais e históricos, construindo significados que vão nortear as práticas de atendimentos aos alunos surdos (BAKHTIN, 1981).
Inicialmente, é preciso destacar que, de acordo com a SEME, a implantação desse projeto está articulada com a discussão mais ampla feita pelo Ministério da Educação (MEC), no documento intitulado Diretrizes da Política Nacional de Educação Especial (Resolução CNE/CEB nº 2, de 11 de setembro de 2001) e com toda a legislação pertinente [1] e é resultado da intensa reflexão do grupo central da SEME, a partir do trabalho realizado nas escolas. No documento citado, o MEC define que a Educação Especial se constitui em uma proposta pedagógica com estratégias e recursos especiais que tem por finalidade apoiar e, em alguns casos, substituir o serviço educacional comum. Define também que o atendimento aos alunos com necessidades especiais, denominado serviço de apoio pedagógico especializado, poderá ser feito em salas comuns ou em salas especiais, caso haja necessidade de apoio especializado e contínuo ou dificuldades de comunicação e sinalização diferenciada dos outros alunos.
 Até o ano de 2006, esse foi o documento que orientou os sistemas de ensino quanto ao atendimento aos alunos surdos, inclusive balizando a criação de salas exclusivas para surdos onde o ensino era ministrado em língua de sinais por professores fluentes nessa língua.
Mais recentemente, no ano de 2007, o MEC apresentou o documento Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEE): versão preliminar,[1] em que define as novas diretrizes para o atendimento às pessoas com deficiência. Tentando romper com o conceito de inclusão estabelecido na política anterior, nessa perspectiva:
[...] a organização de escolas e classes especiais passa a ser repensada, implicando uma mudança estrutural e cultural da escola comum para que receba todos os alunos, atenda suas especificidades e promova a melhoria da qualidade da educação, configurando-se em resposta às diferentes situações que levam à exclusão escolar e social (BRASIL/MEC, 2007, p. 3 ).

Nesse documento, o MEC estabelece o “[...] direito de todos os alunos de compartilhar um mesmo espaço escolar, sem discriminações de qualquer natureza”. Baseado nesse princípio se posiciona a favor da Educação Especial articulada com a educação comum, tentando agregar ao conceito de inclusão o conceito de salas ou escolas heterogêneas. Pessoas surdas e pessoas ouvintes devem compartilhar o mesmo espaço, sob pena de estarem reforçando ambientes excludentes dentro da escola. Apropriando-se desse conceito de inclusão, a SEME elencou, como um dos objetivos específicos do seu projeto: promover a reorganização da sala de aula comum e o desenvolvimento das ações pedagógicas para atender às necessidades de ensino-aprendizagem das pessoas com surdez em interação com ouvintes.
Assim, podemos observar que a política bilíngüe em Vitória constituiu-se a partir de uma multiplicidade de vozes, configurando-se como “[...] um puro produto da interação social” (BAKHTIN, 2010, p.126). Ao propor a inserção de alunos surdos em sala comum com alunos ouvintes, revela uma profunda relação intertextual com a proposta do MEC, evidenciando a responsividade política da SEME perante a Lei. 
De acordo com a Secretaria Municipal de Educação, esse projeto, fundamentado “[...] na filosofia da inclusão, entendida para além da integração física, se configura em um enorme desafio para a grande maioria dos sistemas de ensino que se propõem a garantir a educação para todos” (VITÓRIA, 2008. p. 4). Porém, torna-se necessário analisar quais as ações que o projeto cria para que os alunos surdos tenham acesso ao conhecimento por meio da língua de sinais.

2 – ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO (AEE) E SALA DE AULA COMUM
A escola pesquisada atendia, em horário integral, a sete alunos surdos, sendo que dois estudavam em turma de alfabetização. O atendimento especializado era realizado em uma pequena sala, ao lado das salas de Educação Física e da biblioteca.
Para viabilizar esse atendimento bilíngue, três novos cargos foram criados: intérprete de Libras, instrutor surdo e professor bilíngue. Além de subsidiar o trabalho em sala de aula comum, esses profissionais deveriam garantir o ensino e a difusão da língua de sinais dentro da escola. Nesse aspecto, foi necessário “[...] criar tempos/espaços escolares para o ensino, uso e difusão da LIBRAS no universo escolar (alunos com surdez, demais alunos, profissionais da escola e comunidade escolar)” (VITÓRIA, 2008, p. 8). Todos os profissionais e alunos participavam das Oficinas de Libras uma vez por semana ou a cada 15 dias. Nos espaços comuns, e nas atividades envolvendo toda a escola, tanto os alunos como os profissionais se empenhavam em estabelecer uma forma de comunicação com os alunos surdos a partir do que já estavam aprendendo nas oficinas ou solicitando o apoio dos profissionais do AEE como intérprete.
Para os alunos surdos, o AEE realizado no contraturno tinha como objetivo instituir “[...] um projeto socioeducativo em tempo integral voltado para atender às necessidades educacionais especiais dos alunos com surdez” (VITÓRIA, 2008, p. 7). Assim, eles estudavam em um horário na sala de aula comum, almoçavam com o instrutor surdo e eram atendidos no AEE somente no outro turno.
Foi interessante perceber que essa estrutura de atendimento imposta pelo projeto era frequentemente burlada, não por rebeldia, mas pela necessidade de oferecer atendimento aos alunos e profissionais da sala de aula comum que iam à sala do AEE solicitar ajuda. Todos os alunos surdos ficavam na sala de aula comum sem o apoio do intérprete, contando apenas com a ajuda de alguns colegas ou dos professores que sabiam o mínimo da língua de sinais.
O não conhecimento da língua de sinais pelos profissionais da sala de aula comum é um fator que precisa ser considerado, principalmente porque o projeto da SEME prevê que eles devem possuir, apenas “[  ] conhecimentos acerca da singularidade linguística e especificidade educacional manifestada pelos alunos com surdez” (VITÓRIA, 2008, p. 9), adquiridos nas oficinas de Libras, dentro da própria escola, em horários de planejamento dos profissionais. Saber a língua de sinais e ter condições de promover interações linguísticas de qualidade com os alunos surdos é um requisito que se aplica somente aos profissionais do AEE, porém a estes não é permitido entrar na sala comum para atuar como intérpretes ou prestar apoio à professora, já que, no entendimento da SEME, a filosofia do projeto é inclusivista. Todo o apoio deve ser realizado fora da sala de aula.
Esse é um dado que revela profunda contradição entre o que está documentado e o que se efetiva na prática, pois um dos objetivos específicos elencados no projeto deixa clara a necessidade de “Garantir que o processo de ensino-aprendizagem de alunos com surdez seja realizado utilizando a LIBRAS e o Português escrito como segunda língua” (VITÓRIA, 2008, p. 6). Como promover esse processo de ensino-aprendizagem em Libras na sala de aula comum, se os únicos profissionais em condições de fazê-lo estão impedidos pela própria filosofia inclusivista defendida pela SEME?
Essas questões merecem ser repensadas porque nesse contexto, o diálogo entre professores e alunos ouvintes é garantido pela comunicação oral. Para eles, o movimento polifônico está assegurado e há a possibilidade da atitude responsiva ativa. No caso de professores ouvintes, não usuários da língua de sinais e alunos surdos, o que existe são negociações de sentido que se estabelecem com alguns gestos de apontar, estratégia usada pelos professores e pela tentativa de usar um pouco da língua de sinais aprendida nas oficinas de Libras, mas que não garantem o desenvolvimento cognitivo desses alunos, pois:
O processo de elaboração conceitual, considerado à luz do princípio dialógico de Bakhtin, configura-se como um processo de articulação, pelo confronto, de múltiplas vozes historicamente definidas, em condições de interação – compreensão/expressão – determinadas. Configura-se como um processo discursivo (FONTANA, 2008, p. 125).

Definitivamente, a mediação desaparece e os alunos surdos também.
Enfim, apesar dos esforços no sentido de ressignificar o atendimento aos alunos com surdez, não há dúvidas de que a sala de aula comum continua sendo um espaço excludente e as crianças surdas as mais prejudicadas. De fato, o projeto atende às Diretrizes da atual Política Nacional de Educação Inclusiva, porém a situação de exclusão a que esses alunos estão submetidos não possibilita o acesso ao conhecimento por meio da língua de sinais, fator indispensável para uma educação bilíngüe.

3 – BIBLIOGRAFIA
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2010 [1929].
_________________ Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981.
BRASIL, MEC/SEESP. Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica. 2001. Disponível em:<In:http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/diretrizes.pdf>. Acesso em 01 fev. 2009.
BRASIL. MEC/SEESP. Política Nacional De Educação Especial Na Perspectiva Da Educação Inclusiva: VERSÃO PRELIMINAR. Brasília.
FONTANA, Roseli A Cação. A elaboração conceitual: a dinâmica das interlocuções na sala de aula. SMOLKA, Ana Luisa e GOÈS, Cecília (Org) A linguagem no espaço escolar: Vygotsky e a construção do conhecimento. Campinas: Papirus, 2008.
PREFEITURA DE VITÓRIA. Secretaria Municipal de Educação. Subsecretaria Político-Pedagógica. Coordenação de Formação e Acompanhamento à Educação Especial. Educação bilíngüe: ressignificando o processo socioeducacional dos alunos com surdez, no Sistema Municipal de Ensino de Vitória, por meio do ensino, uso e difusão da LIBRAS. Vitória, 2008.
RODRIGUES, Ednalva Gutierrez. A apropriação da linguagem escrita pelas crianças surdas. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Espírito Santo, 2009.

Nenhum comentário:

Postar um comentário