segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Alan de Luna Fernandes

Espaço público: Ações de afirmação do “eu”
Alan de Luna Fernandes[1]

Devemos pensar o cotidiano como uma constante de situações que compõem a vida. Essas situações sociais, todas políticas, como todas as relações humanas, trazem seus conflitos marcados na linguagem. Linguagem e política caminham intrinsecamente juntas, pois é a partir da linguagem que nos expressamos e, portanto, vivemos as relações humanas. Estas, também políticas. Embora nós, brasileiros, estejamos acostumamos com a cordialidade, algumas expressões verbais muito utilizadas em nossa cultura demonstram a fragilidade dessa expressão cristalizada e revelam a hierarquia sistêmica. Esse é o caso da expressão “sabe com quem está falando?”, que se desenvolve, em situações de conflito, como uma interrogativa autoritária. O uso comum dessa expressão coloca em cheque nosso sistema social baseado na cordialidade, pois ela denota a ação, opressiva, de uma classe sobre outra.
A sociedade brasileira se diz regida por valores de intimidade, consideração e respeito, entretanto, esse traço linguístico evidencia o desequilíbrio social que vivemos. O autoritarismo presente na expressão “sabe com quem está falando?” revela o conflito que permeia nossa sociedade: o diálogo estabelecido de maneira hierárquica, de acordo com os papéis sociais. 
Segundo DaMatta (1997), “O ‘sabe com quem está falando?’ implica sempre uma separação radical e autoritária de duas posições sociais reais ou teoricamente diferenciadas” (DaMatta,p.181). A expressão marca a imposição de um sujeito sobre outro pelo mecanismo linguístico, o que reflete uma separação social e uma ação de afirmação social (de superioridade) do “eu” sobre seu interlocutor.
Nas situações usuais, em nossa sociedade narcísica, o “eu” procura sentir-se importante e, para isso, inferioriza o seu “outro” por meio de seu status social, a fim de se auto-afirmar hierarquicamente – demonstrar poder (como se para ser alguém, o “eu” tivesse, necessariamente, que anular o “outro” ao invés de partir dele, como ocorre, segundo Bakhtin). Sociedades calcadas no capital, como a nossa, fazem o contrário do que prega a filosofia bakhtiniana, pois se centram no “eu” e não sabem re-partir. A mentalidade que impera é a da “Seleção Natural”, de Darwin ou, como está em Quincas Borba, de Machado de Assis: “Ao vencedor, as batatas”. O homem ainda responde ao pensamento racionalista científico dos séculos passados, pois age como nossos ancestrais, “matando” o “outro”, a partir de quem é constituído, para se mostrar “o mais forte”. Instinto de sobrevivência? Mas, sendo o homem um mamífero e, ao mesmo tempo, um sujeito social, o que impera, a biologia ou a sociologia?
A expressão “sabe com quem está falando?” é construção discursiva – de linguagem – dessa relação contraditória de forças biológica e sociológica que habita o sujeito. A nós, imperam os valores sociais, uma vez que o signo é ideológico, segundo Bakhtin/Voloshinov (1997). Assim, tal expressão discursiva se caracteriza como a auto-representação do sujeito “eu”, de seu poder autoritário e hierárquico. DaMatta ilustra algumas situações acerca do uso dessa expressão, das quais destacamos uma:
“1- Num parque de estacionamento de automóveis, o guardador diz ao motorista que não há vaga. O motorista, entretanto, insiste dizendo que as vagas estão ali. Diante da negativa firme do guardador, o motorista diz irritado: ‘Sabe com quem está falando?’ E revela sua identidade de oficial do exército.” (1997, p.208).

Na situação descrita, notamos tratar de um conflito entre duas pessoas, na qual estão retratados sujeitos de grupos sociais distintos: um oficial do exército e um guardador de carros. Mediante o uso da expressão “sabe com quem está falando?” é que o oficial enfatiza sua posição social de poder e status hierárquico “superior” ao guardador de carros. Para se impor, inferioriza o “outro” a fim de reafirmar sua voz, seus valores, seu poder e seu espaço. Apesar da presença de ideologias (de hierarquização social e superiorização da classe), notamos o sujeito consciente do seu ato discursivo e, portanto, responsável (afinal, para Bakhtin, 2003, é “a unidade de consciência que age de maneira responsável”) pela aplicação da expressão utilizada, no lugar, na hora e com o interlocutor que melhor lhe convém, para garantir a saciedade de suas necessidades (ou desejos – no caso, a vaga no estacionamento), de maneira desrespeitosa e sem critério, como ocorre, muitas vezes, no cotidiano.
Sob o ponto de vista ideológico, essa expressão assinala valores imanentes à sociedade capitalista, aqui exemplificada pelo caso brasileiro: o de que um sujeito que ocupa uma determinada posição ou desempenha um papel privilegiado socialmente deve ter prerrogativas de destaque por exercer função tida como “importante”; o de que o sujeito não é valorizado pelo que é, mas pelo lugar que ocupa na sociedade ou por aquilo que possui; o de hierarquia social e subserviência do economicamente mais “fraco” para com o privilegiado naquele dado momento e situação; entre outros. Assim, a expressão marca a afirmação do “eu” pela inferiorização do “outro” no espaço social.
Podemos afirmar que a linguagem é política (uma vez que ideológica, segundo Bakhtin). E, por isso, o indivíduo, concebido como sujeito social, pode ser representado pela linguagem, pois ela reflete e refrata valores sociais a partir de um espaço e de um tempo determinados, logo, em ação, em movimento, na sociedade, via sujeitos que vivenciam suas experiências cotidianas, sempre políticas, de acordo com seus valores, de maneira responsável ou não, mas sempre responsivamente.

Referências bibliográficas:
BAKHTIN, M. “Arte e Responsabilidade”. Estética da Criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, M. / VOLOSHINOV. “Discurso na vide e discurso na arte”. Tradução para fins acadêmicos de Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza.
___. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997.
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

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