segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Nanci Moreira Branco

Política como ação responsiva: um olhar sobre a repressão e as manifestações políticas no Brasil
Nanci Moreira Branco
UFSCar/ SP



Esse quadro do Quino, de 1986, me fez pensar em quais mudanças ocorreram nessas últimas décadas no nosso país democrático. Que ações, hoje, são repressoras da ação responsiva de cada um enquanto cidadão? Quero propor uma pequena reflexão sobre a nossa responsabilidade política.
Pensando num contexto nacional próximo, lembramos que o último sete de setembro foi marcado por algumas manifestações. Manifestantes se organizam por meio de redes sociais para realizarem a Marcha contra Corrupção nas capitais. Em Brasília, a Marcha reuniu 25 mil manifestantes e ocorreu de forma pacífica durante o tradicional desfile de 7 de setembro. Essa Marcha atacou a absolvição da deputada Jaqueline Roriz, o voto secreto no Congresso e os recentes escândalos de corrupção no governo; além disso, pediu a aplicação da Lei da Ficha Limpa, em Brasília.
Na capital paulista, houve destaque especial para o tradicional Grito dos Excluídos. Há 17 anos a Semana da Pátria é dedicada, no Brasil, à manifestação popular conhecida como Grito dos Excluídos. Tal evento é promovido pelo Setor de Pastoral Social da CNBB, Comissão Pastoral da Terra, Cáritas, Ibrades e outros movimentos e instituições. O lema do 17º Grito é "Pela vida grita a Terra... Por direitos, todos nós!” Trata-se de associar a preservação ambiental do planeta aos direitos do povo brasileiro.
Pensemos um pouco sobre a nossa responsabilidade diante das injustiças que nos cercam. Pensemos, ainda, que a responsabilidade deve sair de uma teoria ética para o domínio da vida vivida – “Responsabilidade genuína só existe onde existe o responder verdadeiro” (Buber, 2009, p.49). Diante do quadro político e social do Brasil, temos a nossa opção de resposta. Digo opção porque não é o fato de tomarmos conhecimento pleno dos fatos que nos faz responder ativamente a eles; temos a opção do silêncio, da esquiva (o que não deixa de ser uma resposta). Assim, a nossa resposta pode se dar tanto na ação como na omissão. “Respondemos ao momento, mas respondemos ao mesmo tempo por ele, responsabilizamo-nos por ele” (idem, p.50).
Uma sempre nova realidade é-nos posta à frente e cabe a nós assumirmos a responsabilidade sobre ela. Cabe-nos não só uma marcha pelas ruas, mas, ainda e principalmente, uma reflexão sobre o nosso papel nesse quadro social. Qual a nossa responsabilidade diante da corrupção que assola o nosso país? Será que a corrupção só existe no Congresso Nacional? É só lembrarmos que os que lá estão foram eleitos pelo povo. O fato de votar no “pior que tá não fica” é realmente uma manifestação de revolta válida diante do nosso quadro político? Qual é a nossa parcela na corrupção?
Há uns dias, um programa de televisão fez uma simulação de um quadro em que um ator, fazendo-se passar por cego, dava uma nota de 50 reais fingindo pensar que era de dez para que os comerciantes lhe voltassem troco. Olha, nem precisa dizer quantos devolveram o troco como se fosse para dez reais. Quantos não furam fila, sonegam impostos, usam de todos os meios pra enganar a previdência social, passam cheques sem fundos, vendem seu voto por uma cesta básica e assim vai. Se se vendem por tão pouco, o que não fariam por muito?
Outra questão que me chama muito a atenção em relação às manifestações públicas é o papel da imprensa diante delas. Sem adentrar em muitos detalhes (o que não é a finalidade deste texto), quero apenas ressaltar o quanto há de manipulação da opinião pública por esses meios de comunicação. Há manifestações que convergem com os interesses de tal veículo; há outras que não. Aqui, a repressão se faz de forma velada.
Assim, uma manifestação contra a corrupção é vista com bons olhos pela imprensa. Os que estão no poder sabem que a ação contra a corrupção não depende só deles. É fácil jogar na cara do povo a irresponsabilidade de ter posto os políticos no poder. Agora, vai o professor sair às ruas manifestando-se contra o sucateamento da educação pública, contra baixos salários! São tachados de “vagabundos” e vítimas de repressão, com direito à “escolta” policial, spray de pimenta e bombas “de efeito moral” (termo, no mínimo, curioso.). E dá-lhe cobertura da imprensa entrevistando mães que não têm onde deixar o filho porque a escola está em greve ou mostrando quantos professores tiram licença-médica, prejudicando o ensino (os meios de comunicação já puseram em debate os motivos de tantos afastamentos reais por questões de saúde?).
Há quem diga, ainda, que não há mais repressão às manifestações. Eu diria que há formas diferentes de repressão. Os professores, quando vão às ruas, não são reprimidos apenas pela polícia, mas esse apelo que a imprensa faz dos prejuízos de uma greve, o que é senão repressão? Quando o ex-governador de São Paulo veio ao interior do estado inaugurar mais uma unidade do Samu, separaram um lugar onde o público em geral podia ficar. Disseram que ali era permitido se manifestar com faixas, cartazes e tal. Mas quando os professores e os agentes penitenciários colocaram suas faixas e o nariz de palhaço, a polícia veio pra cima: estas faixas vocês não podem colocar! Podem ficar aqui, mas eu vou recolher os “nariz de palhaço”! Sem contar que durante uma manifestação na avenida Paulista, houve até proibição de venda de água e alimento para os manifestantes. Sem comentários. Como diz um amigo, “se a democracia deles é assim, imagine a ditadura!”.
O “cala a boca” vem de muitas formas.
Relembro: a realidade está diante de nós e cabe a cada um assinar a sua resposta diante dos fatos. Essa é a nossa responsabilidade. O professor ensina somente conteúdo? Que responsabilidade assumimos pela reflexão sobre a cidadania? A vida nos coloca diante de fatos que exigem de nós uma ação responsiva. E isso se dá todos os dias e a cada novo contato com o outro. O que fazemos diante desses fatos, desse cada novo encontro é a nossa ação responsiva. Não somos cidadãos responsáveis apenas quando vamos às ruas numa marcha contra a corrupção ou pela vida, mas principalmente quando transformamos essa ação numa marcha cotidiana de conscientização sobre ética e cidadania. Não somos responsáveis apenas se participamos do Grito dos Excluídos pela responsabilidade ambiental. Esta deve fazer parte do nosso dia a dia. O que exigir dos governantes se não nos responsabilizamos sequer pelo lixo que produzimos, pela água que desperdiçamos?  Ou mesmo o professor que ensina o seu aluno a importância de lutar pelos seus direitos, mas critica o colega que faz greve e sai às ruas exigindo melhores condições de trabalho e salários dignos. Assim, “é necessário, evidentemente, assumir o ato não como um fato contemplado ou teoricamente pensado do exterior, mas assumido do interior, na sua responsabilidade” (Bakhtin, 2010, p.80). A responsabilidade é de todos e de cada um, em cada novo contexto e oportunidade que a vida nos apresenta. Não há como esperar pra participar depois, deixar pra ser honesto da próxima vez ou transferir a responsabilidade pelo meio ambiente para a próxima geração. Eu “tenho a obrigação de dizer esta palavra, e eu também sou participante no existir de modo singular e irrepetível, e eu ocupo no existir singular um lugar único, irrepetível, insubstituível e impenetrável da parte de um outro. Neste preciso ponto singular no qual agora me encontro, nenhuma outra pessoa jamais esteve no tempo singular e no espaço singular de um existir único. E é ao redor deste ponto singular que se dispõe todo o existir singular de modo singular e irrepetível. Tudo o que pode ser feito por mim não poderá nunca ser feito por ninguém mais, nunca” (idem, p.96).
Não podemos ser nós mesmos os repressores da nossa consciência de responsabilidade pela realidade atual e única que vivenciamos. Só quando assumimos o nosso papel é que podemos fazer uma manifestação verdadeira e que promoverá um país mais justo na economia e na política. Não há como deixar a escolha pra depois. A oportunidade não volta. Vale lembrar que se, por um lado, os meios de comunicação, como emissoras de televisão ou jornal, representam um poder instituído; por outro, as redes sociais ainda se apresentam como uma alternativa à liberdade de expressão, um espaço que pode promover a divulgação dos fatos e a mobilização das pessoas. Basta assumirmos a nossa responsabilidade.

Referências bibliográficas    
BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro&João Editores, 2010.
BUBER, M. Do diálogo e do dialógico. Tradução de Marta Ekstein d Souza Queirós e Regina Weinberg. São Paulo: Perspectiva, 2009.      

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