segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Dania Monteiro Vieira Costa

O sentido político e cultural da brincadeira infantil: um diálogo com Bakhtin, Leontiev e Elkonin
Dania Monteiro Vieira Costa[1]
PPGE - Universidade Federal do Espírito Santo

RESUMO
Discute o modo como Leontiev, Elkonin e Bakhtin compreendem a brincadeira. Inicia apresentando a maneira como Bakhtin (1987) analisa o jogo no contexto da obra de François Rabelais. Em seguida, traz para o diálogo a concepção de brincadeira ou jogo no desenvolvimento infantil de Elkonin e Leontiev, pesquisadores que integram a psicologia histórico-cultural. Finaliza tomando esses autores como referência para realizar a análise de uma brincadeira infantil, discutindo o seu  caráter político e cultural.

Introdução
     O presente artigo visa discutir o modo como Leontiev, Elkonin e Bakhtin compreendem a brincadeira. Para isso, iniciamos apresentando a maneira como Bakhtin (1987) analisa o jogo no contexto da obra de François Rabelais. Em seguida, trazemos para o diálogo a concepção de brincadeira ou jogo no desenvolvimento infantil de Elkonin e Leontiev, pesquisadores que integram a psicologia histórico-cultural. Finalizamos tomando esses autores como referência para  realizar a análise de uma brincadeira infantil, discutindo o seu caráter político e  cultural.

Um possível diálogo sobre a brincadeira infantil entre Bakhtin e os representantes da psicologia histórico-cultural 
      Bakhtin (1987) não se deteve a discutir de maneira específica a brincadeira. No entanto,  ao analisar a obra de François Rabelais  analisou a cultura cômica popular da idade média que, segundo ele, é infinita e extremamente heterogênea nas suas manifestações. Na perspectiva de Bakhtin, François Rabelais traduziu na literatura, com muita riqueza, a cultura da idade média. Nas palavras do autor, “[...] a sua obra, se convenientemente decifrada, permite iluminar a cultura cômica popular de vários milênios, da qual Rabelais foi o eminente porta-voz na literatura” (BAKHTIN, 1987, p. 3).  No capítulo denominado “As formas e imagens da festa popular na obra de Rabelais”, Bakhtin (1987) analisa o modo como Rabelais  se debruça especialmente sobre os jogos e divertimentos dos estudantes e bacharéis no contexto da cultura cômica popular da idade média.  Para ele, “os jogos de toda espécie (desde os jogos de baralho até os esportivos), as predições, adivinhações e augúrios de todo tipo ocupavam um lugar preponderante na parte popular e pública da festa” (BAKHTIN, 1987, p. 200). Também para o autor, “o interesse que Rabelais manifesta pelos jogos não é evidentemente fortuito; partilha-a com toda a sua época. Com efeito, os jogos estavam ligados por um sólido elo, não apenas exterior, mas ainda interior à parte popular e pública da festa” (BAKHTIN, 1987, p. 201).  Desse modo, o jogo expressa uma concepção do processo histórico, enfatizando as relações do homem da idade média com tempo, com o futuro, com o destino e com o poder do Estado. Tudo isso se presentificava de maneira simbólica nos jogos. Assim,
via-se nas imagens dos jogos uma espécie de fórmula concentrada e universalista da vida e do processo histórico; felicidade – infelicidade, ascensão – queda, aquisição – perda, coroamento – destronamento. Uma vida em miniatura desenvolvia-se nos jogos (traduzida na linguagem dos símbolos convencionais), de forma muito direta. Ao mesmo tempo, o jogo fazia o homem sair dos trilhos da vida comum, liberava-os de suas leis e regras, substituía as convenções correntes outras convenções mais densas, alegres e ligeiras. Isso vale não apenas para as cartas, dados e xadrez, mas igualmente para todos os outros jogos, inclusive os esportivos (boliche, pelota) e infantis   (BAKHTIN, 1987, p.204).

      Nessa direção, Rabelais, conforme discute Bakhtin (1987), apresenta o jogo ou a brincadeira como um instrumento simbólico que possibilitava ao homem da idade média  libertar-se, mesmo que, momentaneamente, das leis e regras impostas pelo Estado e pela Igreja.  Mas que, ao mesmo tempo, era uma possibilidade de libertação “efetiva” que estava sendo gestada.
      Importante destacar que entendemos que o modo como Bakhtin (1987) apresenta o jogo na obra de François Rabelais se aproxima em muitos aspectos ao modo como os representantes da psicologia histórico-cultural entre eles Elkonin (1998) [2]e Leontiev (1988) concebem a brincadeira e ou jogo  no desenvolvimento infantil.  Esses pesquisadores concebem a brincadeira infantil de um modo muito peculiar, na medida em que compreendem que a brincadeira não é instintiva. Ao contrário, defendem que ela  é eminentemente histórica e  cultural. 
     Assim,  os representantes da psicologia histórico-cultural e Bakhtin compreendem que   as brincadeiras  são de natureza cultural, ou seja, as brincadeiras ou os jogos têm relação direta com a vida. O homem da idade média retomava a vida nos jogos da festa popular. Em outras palavras, via-se nas imagens dos jogos uma espécie de fórmula concentrada e universalista da vida e do processo histórico. Também conforme estudos desenvolvidos por Elkonin (1998, p. 48) e Leontiev (1988) “a natureza dos jogos infantis só pode ser compreendida  pela correlação existente entre eles e a vida da criança em sociedade”. 

O sentido político e cultural da brincadeira  infantil

      Buscando, portanto, discutir o sentido político e cultural da brincadeira infantil trazemos para a discussão o modo como Elkonin, Leontiev e Bakhtin concebem a brincadeira  e, para melhor entendê-la, iniciamos com a apresentação de um evento[3], cujo tema é a brincadeira. Ele ocorreu em turma de crianças de 4 anos a estagiária Jaq  ter realizado a leitura da história O sapo lambão. A professora e a estagiária levaram a turma para o pátio, mas as crianças Car, Kez e Emi [4]ficaram na sala de aula e Car pega o livro e inicia a leitura da história:

T1 Car: ((sentada na cadeira como a professora e segurando o livro como ela, começa a contar a história do sapo lambão)) na historinha do sapo lambão... o sapo lambão colocou a língua na areia... ((começa a cantar a música que a professora ensinou)) o sapo não lava o pé... não lava porque não quer... ele mora lá na  lagoa... não lava o pé porque não quer... mas que chulé::: ((canta novamente a música, mas troca o nome do sapo pelo nome da menina para quem ela estava contando a história)) a  Kez  não lava o pé... não lava porque não quer... ele mora lá na lagoa... não lava o pé porque não quer... mas que chulé::: (   ) oh o sapo tá covando o denTE... ((mostra ilustração do sapo escovando os dentes)) quem gosta de covar o dente?
T2 Kez: eu:::
T3 Car: Kez... é você mesmo covando o dente... ((mostra ilustração do sapo)) quando aqui fica um monte de bichinho aqui oh... dá negócio... um monte de bichinho... ((mostra os dentes)) oh o sapo na lagoa... o sapo não lava o pé porque não quer... ((fala esse trecho da música como se estivesse lendo no livro)) olha gente olha aqui tá vendo a historinha do sapo... olha...os dois irmãos... ((olha a ilustração de dois sapos se abraçando)) pra QUE ISSO? pra QUE ISSO? o sapo de olho fechado... ((para a leitura para tossir)) nossa::: os dois tá com batom... não os dois não tá com batom...só um... ele mora na lagoa... olha que lindo... chuá::: quem come isso? ((mostra a ilustração do sapo comendo mosquito))

       Conforme é possível observar, a menina Car realiza o que os representantes da psicologia histórico-cultural chamam de jogo protagonizado. No jogo protagonizado, as crianças ocupam lugares sociais, cuja “[...] essência interna consiste em reconstituir precisamente as relações entre as pessoas” (ELKONIN, 1998, p. 284). Para esse autor, a brincadeira está intimamente relacionada com as necessidades que as crianças sentem, desde muito cedo, de se comunicar com os adultos e de compreender esse mundo. Necessidades que se convertem em tendência para levar uma vida comum com eles, por isso as relações humanas são o cerne da brincadeira. Assim, quando a criança assume o lugar social de professora, no jogo, ela leva em consideração as convenções, isto é, as regras sociais referentes ao lugar que ocupa. Por isso, a menina Car ao ocupar o lugar de professora, se senta na cadeira como a professora, segura o livro do mesmo modo que a professora e também como ela convoca as crianças para, naquele momento, vivenciarem  de maneira simbólica o mundo dos adultos.
     A vivência pela criança do mundo dos adultos por meio do jogo protagonizado também está intimamente relacionada à linguagem. Ou seja, “ocupar” um lugar na sociedade por meio do jogo protagonizado é, além de assumir a linguagem gestual  da função representada (sentar na cadeira e segurar o livro), também utilizar a linguagem verbal por meio da utilização dos enunciados que são comumente utilizados pelas pessoas que desenvolvem a função por ela representada. Por isso, a menina Car se dirige a Kez, sua interlocutora, para fazer perguntas que sua professora fazia costumeiramente: “quem gosta de covar o dente? (T1), pra QUE ISSO? (T3), quem como isso? (T3), que como aquele negócio que eu mostrei?...hein...Kez? (T5), olha que ele mora...vamos ver que ele mora? (T8)”. Desse modo, no desenvolvimento do jogo protagonizado, a criança utiliza gêneros discursivos utilizados na atividade humana representada no jogo, transitando, assim, em um espaço discursivo que não é utilizado por ela no seu cotidiano. Por isso, é possível inferir que o jogo protagonizado contribui para o desenvolvimento da linguagem.
      Além desses aspectos é fundamental refletir sobre as questões enunciadas por Bakhtin (1988) que apresentamos no início deste texto e que reforçam a compreensão do sentido político da brincadeira. Conforme o autor, uma vida em miniatura desenvolvia-se no jogo. A menina Car constrói uma vida em “miniatura”, uma vida que na realidade pela sua condição de criança, não é possível vivenciar. Assim, por meio da brincadeira, ela pode estar no lugar da professora. Podendo, assim sair dos trilhos de sua vida comum, se liberar das leis e regras da escola e quebrar a hierarquia social nela presente. Em outras palavras, a brincadeira infantil tem uma dimensão política, pois ao assumir o lugar da professora no jogo protagonizado, a criança transgride a ordem vigente  e se coloca em condição de igualdade em relação àquela que mais concentra o poder na sala de aula. 
      Bakhtin (1987) na sua análise também aponta que o sujeito da festa popular da idade média quando realizava os jogos substituía as convenções correntes por outras convenções mais densas, alegres e ligeiras. Vimos que menina Car no meio da história insere uma música muito conhecida: “O sapo não lava o pé” e num determinado troca o nome do sapo pelo nome da menina Kez para quem ela estava contando a história.  Esse fato torna o ato de contar história, atividade que na maioria das vezes é realizada de maneira formal,  lúdica e alegre.
     Outra função do jogo na festa popular da idade média, conforme Bakhtin (1987, p. 208), “[...] é de destronar o sombrio tempo escatológico das concepções medievais do mundo, de renová-lo no plano material e corporal, [...] de transformá-lo num tempo bom e alegre”.  Nessa direção, entendemos que o ato de pegar um livro e representar  a leitura desse  livro, mesmo sem ter o domínio da escrita convencional, é um ato de destronar o sombrio, de lidar com o medo de não aprender a ler e a escrever. É a busca da renovação, da possibilidade de dominar a escrita, um artefato cultural tão importante para a sociedade em que ela está inserida.

Algumas considerações
    Muitas vezes, a escola não tem compreendido o real significado da brincadeira para a criança. Por isso, estabelecer um diálogo entre Bakhtin, Leontiev e Elkonin sobre a brincadeira infantil e, em seguida, tomar esses autores como referência para analisar uma brincadeira infantil é um desafio necessário. Conforme vimos, a brincadeira é coisa “séria”. Ela é fundamental para o desenvolvimento da criança. Há muitos elementos no jogo protagonizado. No entanto, não era objetivo deste texto discutir todos esses elementos. Apesar disso,  apresentamos algumas questões que são fundamentais para a compreensão da importância da brincadeira infantil. Assim, conforme vimos, ao realizar o jogo protagonizado ou a brincadeira, a criança vai além da sua realidade quando vivencia situações que não poderia realizar no seu cotidiano. Assim, ela produz enunciados de diferentes atividades humanas, ampliando, assim, as suas capacidades de produção de linguagem. Além disso, lida com seus medos em relação ao poder  instituído ao promoverem o destronamento quando assumem o lugar do adulto.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: O contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987.
ELKONIN, Daniil B. Psicologia do jogo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
LEONTIEV, A.N. Os princípios psicológicos da brincadeira pré-escolar. In: VIGOTSKI, L.S.; LURIA, A.R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone Editora, 1988. p. 119-142.


[1] Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo. Bolsista FAPES.
[2] Texto de 1979.                                                                                                                                                               
[3] Evento que integra a dissertação “O Trabalho com a linguagem oral na educação infantil” defendida em 2007 pelo PPGE-UFES por Dania Monteiro Vieira Costa. Esse evento ocorreu no dia 23 de agosto de 2006 em uma turma de crianças de 4 anos de uma instituição educativa infantil do município de Vitória-ES.
[4] Conforme indicado no protocolo de pesquisa não divulgaremos os verdadeiros nomes das crianças.

Nenhum comentário:

Postar um comentário