segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Ana Beatriz Ferreira Dias

A escuta como ato responsável em manuais de justiça restaurativa
Ana Beatriz Ferreira Dias – ana.dias@uffs.edu.br.
Professora Assistente I do Curso de Graduação em Letras Português e Espanhol – Licenciatura, da UFFS/ Campus Cerro Largo. Integrante do Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso (GEGe) e aluna de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Linguística da UFSCar.

            Assim como nesta linha nos encontramos – você eu – por meio de palavras e contrapalavras, em praticamente todos os nossos encontros, desde os mais corriqueiros do dia a dia até aqueles marcados por uma solenidade formal, lá estão elas - as palavras, que, enquanto nos viabilizam um encontro entre sujeitos que buscam completude, constroem e organizam nossas experiências. Neste mundo que vejo, que reconheço como tal, é “mundo já conquistado, já colonizado por palavras, um mundo com uma pesada crosta de discurso” (CALVINO, 2006. p. 143). Fora dessa matéria, então, nada resta, como também garante Ponzio (2010, p. 15): “Não existe comportamento e não existe pensamento, nem tampouco sensação, sentimento, humor, desejo e imaginação que não sejam feitos dessa matéria, a matéria da palavra”.
            Diante desse encontro de palavras, que, por isso, é sempre um encontro entre sujeitos (PONZIO, 2010), há sempre a possibilidade de um encontro com uma palavra autoritária, monológica, fechada, uma palavra que visa à exclusão do outro em nome de sua identidade. Neste caso, podemos afirmar que há um encontro com a palavra que, para Bakhtin (2003), inibe o pensamento de ser mais, bloqueando o seu desenvolvimento, criatividade, liberdade. Trata-se de uma palavra com limitadas condições de contato e combinações que exige “repetição reverente, e não desenvolvimento sucessivo, correções e complementos” (BAKHTIN, 2003, p. 368).
            Diante dessa palavra que tende ao monologismo, há apenas uma possibilidade: limitar-se a ouvir, no sentido, de ouvir, reproduzir como forma de obedecer. Esse parecer ser, então, um tipo de comunicação particular de uma cultura de guerra como a nossa que há séculos incentiva relações sociais que buscam a eliminação do outro, do diferente, como forma de legitimação de um eu egoísta e autoritário. Embora dominante em nossa cultura, esse tipo de encontro não é a única forma de relações verbais que existem. Interessa-nos aqui discutir a procura por uma outra palavra, no sentido atribuído por Ponzio (2010): uma palavra livre em relação às palavras da linguagem oficial, dos lugares comuns, que é outra não porque é “alternativa”, mas sim porque é abertura à alteridade. Estamos falando, pois, de uma palavra singular que faz uma diferença não indiferente, “insubstituível na sua relação com o outro, único, responsavelmente, responsivamente, única para o outro” (Ibid.).
            Compartilhamos com o autor que, independente de ser palavra de outro ou do outro de mim mesmo, essa outra palavra se dá sempre na posição de escuta, no dar tempo ao outro, “o outro de mim e o outro eu” que implica sempre “dar tempo e dar-se tempo”. O escutar, nesse sentido, deixa o outro falar, escolher o que quer dizer, assumindo a contradição e a polifonia constitutiva da linguagem, como defende Ponzio (2010).
            As reflexões que aqui trazemos, ainda em construção e parte de um projeto maior de pesquisa, são uma tentativa de pensar, com base no pensamento do Círculo de Bakhtin e de estudiosos mais contemporâneos ligados a essa perspectiva, como Ponzio e Geraldi, dimensões de práticas de justiça restaurativa ligadas (ou não) a escuta como possibilidade de encontro com a outra palavra. Com isso, pretendemos contribuir com a compreensão e até aperfeiçoamento das interações verbais entre sujeitos cuja relação é marcada por situações de violência, mantendo, para isso, um diálogo produtivo com fundamentos teóricos e metodológicos elaborados pela justiça restaurativa, como as técnicas de Comunicação Não-Violenta (CNV) propostas pelo psicólogo Marshall Rosenberg e utilizada em algumas das experiências dessa nova forma de justiça que vendo implantada no Brasil.
            Para melhor contextualizarmos este estudo, convém definir, em linhas gerais, o compreendemos por justiça restaurativa, bem como estabelecer a relação dessa prática com manuais de formação em justiça restaurativa. Ainda que tenham suas particularidades, as experiências com justiça restaurativa acabam se aproximando em muitos pontos, já que podemos identificá-las como integrantes do movimento restaurativo, um movimento social emergente em várias partes do mundo. Investigando essa diversidade quanto às práticas dessa justiça, Garapon (2001) observa que todas elas buscam, por exemplo, construir relações sociais mais pacíficas, ser sensíveis ao contexto de cada caso, transformar situações adversas em ocasiões para construir um outro modo de existência, reduzir o quadro rígido e abstrato de processos de justiça. Dessa forma, atribui um novo rosto à justiça: “reconstruir a relação no que ela tem de mais concreto”, tendo como “vizinhos homens e carne e osso, não a lei!” (GARAPON, 2001, p. 251).
Diretamente ligada nos dias de hoje à resolução de situações de violência, a justiça restaurativa parece não se reduzir a isso; ela pretende ser uma determinada visão de mundo que, ao rejeitar as nossas relações sociais baseadas em um modelo de dominação, exclusão do outro e de seus sentimentos, se diz muito próxima de uma cultura de paz. Uma série de instâncias vem incorporando práticas restaurativas em ações diárias, dentre elas escolas, instituições de atendimento à infância e à juventude, sistemas de justiça, comunidades, ONGS, etc.
Como marco da introdução de práticas restaurativas no Brasil costuma-se indicar o ano de 2004, quando aconteceu o I Simpósio Brasileiro de Justiça Restaurativa. A partir desse período, em que muitas experiências de justiça restaurativa passaram a ser sistematizadas, o movimento vem adquirindo grande visibilidade no cenário nacional, sendo divulgado por meio de sites, folderes, propagandas, artigos, manuais, etc.
Nesse contexto de difusão das práticas restaurativas, os manuais são destinados à formação principalmente de agentes sociais que pretendem atuar como coordenadores, mediadores ou facilitadores principalmente em interações entre sujeitos (tradicionalmente denominados vítimas e ofensores) envolvidos em danos, atos infracionais ou outra situação de violência.
            Preocupado com seu agir profissional, o coordenador precisa estar preparado para enfrentar o encontro entre vítima e ofensor em toda a sua complexidade. Sim, estamos falando de um ativismo complexo, mas acreditamos que esses agentes sociais têm potencialmente condições de contribuir com a construção de relações mais humanas. Ao aproximar a prática restaurativa de vários profissionais, como de professores, assistentes sociais, advogados, líderes comunitários e religiosos, grande parte dos manuais sobre justiça restaurativa fazem parte das atividades de capacitação/formação de sujeitos para que atuem na área de justiça restaurativa. Assim, os manuais tendem a orientar, em grande medida, as ações desses sujeitos que, nesta fase de introdução das práticas restaurativas no país, são um dos principais responsáveis pela direção e encaminhamento das atividades dessa abordagem de justiça. No cerne desse planejamento para formação em justiça restaurativa, constam técnicas de comunicação que visam a orientar agentes sociais a coordenarem, facilitarem ou mediarem a interação entre vítima(s), ofensor(es) e suas respectivas comunidades de apoio, como amigos, parentes e líderes religiosos.
Neste trabalho, interessa-nos justamente elementos dessas técnicas de comunicação referentes às etapas do Círculo Restaurativo, considerado o principal momento do Procedimento Restaurativo porque há o encontro entre ofensor, vítima e suas respectivas comunidades para coletivamente construírem respostas sobre o ato de violência, expressarem seus sentidos e elaborem um plano de ação que restaure a relação, entre outras ações.
            Tendo em vista as observações aqui tecidas, estamos observando na pesquisa que desenvolvemos que os muitos manuais de justiça restaurativa, como é o caso de Iniciação em Justiça Restaurativa: Formação de lideranças para a transformação de conflitos (2008) e Justiça e educação em Heliópolis e Guarulhos: parceria para a cidadania (2007), a introdução da escuta como um tempo de ouvir o outro, com seus sentimentos, de uma forma respeitosa, dimensão da palavra até então praticamente inexiste em práticas de justiça tradicional, sobretudo, quando esta escuta se refere à palavra da vítima. Encontramos o tempo disponível para o outro. Ainda assim, é possível afirmarmos a necessidade de um aprofundamento nas questões de escuta nos manuais para que essa posição seja uma busca essencial pela outra palavra, de que tratamos anteriormente. Com isso, evitaremos a escuta quando ela passa ser o querer ouvir, a confirmação, reprodução da fala do outro, por exemplo. De acordo com Ponzio (2010, p. 55), o querer ouvir, diferente da escuta, “obriga a dizer, impõe a monofonia, a pertinência às perguntas, a coerência, a não contradição”. 
Além disso, é preciso dar destaque, com o aval da escrita, que compreensões são prenhes de mal-entendidos e excluí-los é negar a alteridade. Há que se admitir o funcionamento da linguagem, sobretudo, em atos de compreensão do discurso de outrem, que precisa ser um ato ativo e responsivo para, assim, encontrar a outra palavra. A compreensão de discurso poderá, neste caso, ir além da enunciação primeira, criar algo novo, constituir novos sentidos. Para Ponzio (2010, p. 18), compreensão e mal-entendido estão ambos presentes em situações que não de recíproca exclusão; são condição para uma escuta impregnada de dar tempo ao outro, de “disposição incondicional ao acolhimento da sua palavra: Compreensão e mal-entendido vão de mãos dadas e geralmente a compreensão é feita de mal-entendidos. Eliminar mal-entendidos significa pôr em discussão uma relação, um consenso, uma adesão, uma relação de recíproca compreensão”.
Para pensar a escuta sob essa dimensão da outra palavra, é preciso enfrentar o instável, questionar nossa busca incessante pela segurança. Construiremos, quem sabe, no fluxo das instabilidades uma estabilidade provisória e a confessaremos ao outro como uma posição provisória, como sugere Geraldi (2002), falando do encontro entre palavras e contrapalavras. Esse é caminho da pesquisa em linguagem na contemporaneidade, começar a introduzir a noção de indeterminação em suas atividades, como sugere esse estudioso, em vários de seus escritos. Diante de um esgotamento no fazer científico, a que a Linguística não escapa, Geraldi (2010) lembra que nem sempre saberemos os caminhos a trilhar. Porém não estamos sozinhos: “nestes novos caminhares, certamente estamos reconstruindo parentescos, reencontrando novas parcerias” (GERALDI, 2010, p. 52).  No caso deste trabalho, onde ensaiamos uma leitura possível e ainda inicial sobre certos aspectos do uso da linguagem em materiais de justiça restaurativa, colocamos a Linguística para conversar com a Justiça, que atualmente também se renova por meio aqui da Justiça Restaurativa. 

Referências:
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Tradução Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
CALVINO, Ítalo. A palavra escrita e não-escrita. In.: AMADO, Janaína; MORAES FERREIRA, Marieta de. (Orgs.). Usos e abusos da história oral. 8. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. 
EDNIR, M. (ORG.). Justiça e educação em Heliópolis e Guarulhos: parceria para a cidadania. São Paulo: CECIP, 2007. Disponível em: <
GARAPON, Antoine. A justiça reconstrutiva. In: GARAPON, Antoine. et al. Punir em Democracia. Tradução Jorge Pinheiro. Instituto Piaget: Lisboa, 2001.
GERALDI, JOÃO WANDERLEY. Pesquisa em linguagem na contemporaneidade. In: Ancoragens – estudos bakhtinianos. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010.
__________________________. Leitura: uma oferta de contrapalavras. Educar, Curitiba, n. 20, Editora da UFPR. p. 77-85.
JUSTIÇA PARA O SÉCULO 21. BRANCHER, Leoberto Narciso. Iniciação em Justiça Restaurativa: Formação de lideranças para a transformação de conflitos. Porto Alegre: AJURIS, 2008.
PONZIO, Augusto. Procurando uma palavra outra. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.

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