segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Marcia Soares de Alvarenga

Produção de sentidos sobre cidadania na educação de jovens e adultos: uma aproximação entre bakhtin e gramsci
Marcia Soares de Alvarenga
Faculdade de Formação de Professores/UERJ

No presente texto, volto-me para o espaço regido pelos enunciados dos alfabetizandos jovens e adultos de Jaramataia na perspectiva de que sentidos sobre cidadania são marcados pelo lugar que estes sujeitos ocupam na realidade social do sertão do estado de Alagoas
Nas ressonâncias dos sentidos da cidadania, entendo existir uma possível aproximação teórica[1] entre o pensamento de Gramsci e Bakhtin que muito interessa para a busca da compreensão dos sentidos da cidadania nas vozes dos alfabetizandos.
Através das formulações bakhtinianas, vimos existir uma constante tensão dialética na ideologia do cotidiano, pois os sentidos não hegemônicos ou não dominantes podem nela infiltrar-se e atingir os sistemas hegemônicos ou as ideologias constituídas, confrontando-se com estes, sendo possível modificá-los e transformá-los.
Esta perspectiva permite admitir serem os sentidos das palavras histórico e socialmente produzidos, resultante de lutas e conflitos entre grupos sociais antagônicos, refletindo e refratando diferentes pontos de vista e concepções de mundo na e pela linguagem. 
Ao desenvolver a noção de hegemonia, Gramsci nos fala, em seus cadernos manuscritos, que toda linguagem contém uma concepção de mundo. Esta, por sua vez, vem a se manifestar implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, enfim, em todas as esferas nas quais a vida humana se expressa e se realiza, sejam elas individuais, sejam elas coletivas.
Ao afirmar que toda linguagem contém uma concepção de mundo, Gramsci problematiza que a questão fundamental que envolve toda concepção de mundo é justamente de ter que conservar a unidade ideológica em todo bloco social sob o qual está cimentada uma determinada ideologia.
Por seu turno, as contribuições de Bakhtin também nos ajudam a compreender como a ideologia das classes dominadas pode encontrar brechas para se contrapor, pela linguagem, à ideologia dominante.
Para ele, a palavra é signo ideológico e como tal, se constitui em instrumento da consciência e arena da luta de classes. A palavra, nos afirma Bakhtin, está sempre carregada de um conteúdo ideológico vivencial. Ela penetra em todas as relações sociais, configurando e reconfigurando continuamente a nossa consciência na corrente tensionada da vida social. Preocupado em demonstrar estar a consciência situada em relação ao ser social e não acima do ser social, este autor admite que a consciência ganha existência real quando passa por todas as etapas da objetivação social.
Melhor explicando, para Bakhtin a consciência precisa deixar de ser mera expressão embrionária fechada na mente das pessoas e entrar na corrente dos sistemas ideológicos do terreno social. A  proposição de Bakhtin se firma na defesa de que só quando as pessoas entram nesta corrente, mediada pela linguagem, é que a consciência incorpora força e concretiza sua existência. Na verdade, adverte, a consciência não passa mecanicamente de um estado a outro, ela é ambivalente e, assim sendo, a ambivalência se constitui num dos traços presentes da linguagem. Pela linguagem, os sujeitos não só passam a receber influência das ideologias constituídas, mas, também passam a exercer influência sobre elas, dialeticamente refletindo e refratando a realidade.
A palavra, como signo ideológico, encarna a interação viva das forças sociais, pois, através dela, pontos de vista contraditórios disputam posições, tentam acumular forças em direção à conquista da hegemonia de seus projetos de sociedade e, em termos de linguagem, a hegemonia de sentidos das concepções de mundo das quais ela é portadora.
A perspectiva bakhtiniana considera que a dimensão monovalente da palavra não prospera de maneira linear e harmônica, mas tensionada. Na realidade, afirma, a língua penetra em todas as relações entre as pessoas, sejam estas relações de base ideológica, nas dos encontros da vida cotidiana, sejam elas de caráter político, etc. Portanto, são múltiplas as formas de construir a sua validade.
Neste aspecto, pode-se depreender que, tanto em Gramsci quanto em Bakhtin, as possibilidades de produzirmos as transformações sociais se agudizam em momentos de crise, mas não necessariamente a partir destes.
Curiosamente, pode-se observar que estes autores recorrem às figuras híbridas fabulosas da mitologia para exemplificarem, respectivamente, as possibilidades dialéticas produzidas pelo senso comum e pela palavra como signo ideológico. Ou seja, estas possibilidades tanto podem agir para a manutenção da ordem social vigente, tanto quanto podem trabalhar para a sua transformação.
Na conformação dúplice corporal da figura do Centauro, através do qual Gramsci imagina a consciência das classes subalternas, coexistem a força e o consenso, a atividade e a hegemonia, o momento individual e o momento universal.
A partir da reflexão sobre a dupla perspectiva, Gramsci argumenta a respeito do permanente movimento de contradição vivido pelas classes subalternas. Entretanto, defende com entusiasmo ser neste mesmo movimento que se gesta a própria superação do senso comum. Este pensador italiano defende com entusiasmo, ser neste mesmo movimento que se gesta a própria superação do senso comum.
Por sua vez, Bakhtin nos afirma que é na palavra que os indivíduos materializam a sua consciência. A dimensão ideológica da palavra, também é movida por uma dupla perspectiva. Bakhtin recorre à figura de Jano, o ser mitológico cuja cabeça é composta por duas faces, permitindo, assim, representar a duplicidade da palavra. Nela, a verdade viva para uns não pode deixar de ser para outros a maior das mentiras.
Em relação ao encaminhamento prático-teórico-prático compreender os sentidos dos enunciados dos alfabetizandos é reconhecer ser possível, no plano da linguagem, depreender o núcleo de bom senso do qual são geradas as energias criadoras cuja efervescência nos indica as possibilidades de resistência dos alfabetizandos de Jaramataia em face ao sentido monovalente de cidadania transmitido  pelas políticas oficiais de alfabetização de jovens e adultos.
As proposições políticas e ideológicas despertadas pelas formulações teóricas destes autores permitem orientar as reflexões acerca do lugar que os alfabetizandos de Jaramataia ocupam no atual contexto social brasileiro. Tais reflexões me induziram a alguns questionamentos, ou seja, que sentidos de cidadania são explicitados nas suas palavras? Como suas palavras refletem, mas também, refratam a ideologia dominante?
- Se pudesse, quem soubesse ler e escrever, seria cidadão e poderia melhorar a vida. A gente sabe que tem direito, mas sabe que nem toda hora a gente pode ter esse direito, porque nem sempre ele está pra nós. ( trabalhadora rural de aluguel, 23 anos).

Entendo que os alfabetizandos, por viverem a ausência quase absoluta de vestígios de direitos, poderiam, a partir dos problemas vividos e dos direitos que lhes são negados, atribuírem sentidos à sua consciência sobre cidadania.
Os sentidos da cidadania, nos enunciados dos alfabetizandos, parecem ganhar força e existência real, tendo como matéria-prima a realidade em que vivem, pela forma como com ela se relacionam, extraindo dela as maneiras próprias de perceberem as suas condições de vida, de ser e estar no mundo.
As suas vozes, os seus enunciados, indicadores mais sensíveis de seus movimentos de resistências, bem nos demonstram.
- Ser cidadão é ter direitos e deveres(...)E cidadania seria o conjunto de tudo isso. Seria bom se a nossa cidadania fosse realmente essa, mas não é. Então, não adianta a gente dizer que cidadão é ter direitos, saber isso e não ter direitos. Então cidadania é isso, mas a cidadania está bem longe de acontecer.(tecelã de rede de pesca, 19 anos)

Para as políticas oficiais de alfabetização os alfabetizandos do município de Jaramataia são os “excluídos” social e economicamente e que têm, na alfabetização, a única possibilidade de se transformarem em cidadãos.
 Tudo no mundo depende do trabalho. É isso que o povo daqui tem precisão (...), e esse é um direito que não é só meu, mas de todos os outros de todo ser humano (...).Porque nós precisamos de muita coisa e tudo depende disso (...). É do trabalho que a gente enche a nossa barriga e de onde a gente tira o nosso respeito... ( funcionária pública aposentada, 67 anos).

É do trabalho que emana, invariavelmente, toda a perspectiva de vida. A relação que os alfabetizandos fazem, entre o direito ao trabalho e suas situações de vida, parece determinante  para apreender de que modos a realidade em que vivem vem sendo produzida e como esta realidade tem marcado as suas existências e dialeticamente as possibilidades de se tornarem cidadãos.

 (In)conclusões
Nas vozes dos jovens e adultos trabalhadores está presente a denúncia de que os direitos trabalhistas, explicitados pela relação contratual outorgada pela lei, não são cumpridas ou respeitadas.
O fato de reivindicarem “um salário que dê pra viver” implica, preliminarmente, no reconhecimento de que só entrando na base da estrutura, ou seja, “conseguirem um emprego melhor” é que têm possibilidade de melhorar de vida. Nesta perspectiva, produzem a relação de sentidos entre cidadania e alfabetização, pois como pude refletir em outros momentos da pesquisa, ser alfabetizado torna-se uma qualidade, um recurso individual, indispensável para se ter validade, na estrutura ocupacional da cidadania regulada.
A ambigüidade e a dupla perspectiva traduzem as formas auspiciosas dos alfabetizandos de Jaramataia de se recusarem à sujeição imposta pela facticidade determinista da ideologia dominante que só enxerga a menoridade, justificando a impossibilidade de estes sujeitos poderem participar da construção de um projeto de classe e de humanidade diferente daquele que os submete ao processo de subalternidade.
Pode-se aprender nos seus enunciados, a recusa conformada/resistida que entremeiam nas suas vozes, criando rupturas em face à ordem e ao poder econômico-social clientelista e concentrador que campeia, secularmente, em Jaramataia.  Dessa forma, os alfabetizandos parecem construir lógicas próprias para resistirem às ideologias dominantes que os lançam contra os perigos de serem, definitivamente, empurrados em direção ao abismo escavado, historicamente, pela sociedade desigual.

Referências bibliográficas
BAKHTIN, M.  Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
___________. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992.
GRAMSCI, A. Antonio Gramsci: cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v. 3, 2000
____________. Antonio Gramsci:cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v. 2, 2000.
____________. Antonio Gramsci: cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v. 1, 1999.


[1] Tamarit (1992) propõe essa aproximação a partir das noções gramscianas sobre o senso comum e núcleo de bom senso e em relação noção de multicentralidade do signo desenvolvida por Bakhtin.

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