segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Fabrício César de Oliveira

Por uma Poética Bakhtiniana
Fabrício César de Oliveira
email: prof.fabricio_oliveira@yahoo.com.br
Doutorando Linguística – Linguagem e Discurso pela UFSCar


"Nenhuma árvore explica os seus frutos,
 embora goste que lhos comam."
[Miguel Torga, Bichos]


O homem é determinado pelo seu futuro (GERALDI). Esta grave sentença nos leva a pensar o porquê da obra de Mikhail Mikháilovich Bakhtin (1895- 1975). E a razão dela esbarra no modo como olhar o mundo – por um humanismo da alteridade (PONZIO, 2008); no como os discursos podem ser poderosos – como são empregados na cronotopia; e na maneira como a ideologia está já embebida em cada palavra, em cada diálogo – dialogia. No entanto, todas essas consequências conceituais da causa do pensamento bakhtiniano estão associadas, para nós, a uma espécie de revolução poética em sua obra. Está na ordem do discurso e nos estudos da palavra, como signo verbal, a natureza de memória de futuro que alimenta o dizer e o escrever poético, por serem os indicadores mais sensíveis das modificações e revoluções sócio-históricas e ético-estéticas.
As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É, portanto, claro que a palavra será o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados. A palavra constitui o meio no qual se produzem lentas acumulações quantitativas de mudanças que ainda não tiveram tempo de adquirir uma nova qualidade ideológica, que ainda não tiveram tempo de engendrar uma forma ideológica nova e acabada. A palavra é capaz de registrar fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais. (BAKHTIN, 1929, p. 41. O grifo é nosso.)

Há uma inversão do olhar sobre a estética/ética do mundo por Bakhtin. E parece que uma das funções da poesia deveria ser esta: a de nos fazer ver o que antes não víamos, ou nos fazer olhar de modo diferente para o mesmo, como ocorre nas poesias de Manoel de Barros que [des]inventam nosso olhar. Há uma [des]invenção antecipada do estruturalismo que vigoraria pelo século XX, em ciências humanas, através de um olhar metalinguístico bakhtiniano. Há uma revisão dos padrões filosóficos racionalistas através de uma chamada abertura causada pela crise da razão, marcada em Bakhtin, Alberto Caeiro, e também trabalhada por Rancière em Filosofia Política[1]. Além disso tudo, há uma revolução copernicana que é central na obra de Bakhtin: a visão idealista e egotista, que colocava o Eu como epicentro, dá lugar a uma relação [in]tensa do EU com Outro. Tão intensa que EU/OUTRO devem ser vistos e se verem como singularidades complementares e em diálogo, tendo o EU uma necessidade estética absoluta do OUTRO, assim como OUTRO/EU a um EU/OUTRO depende. E está nessa relação a principal fonte dos jogos discursivos, pois é na arena mínima que os diálogos ideológicos se digladiam, por interesses pessoais e globais, particulares ou sociais. Esse cronotopo mínimo constrói dialogicamente embates macro, do cotidiano à ideologia oficial.
 Apesar de instaurar, influenciar ou antecipar todas essas mudanças conceituais, em diferentes campos do saber, Mikhail Bakhtin em nenhum momento defende, claramente, uma poética, embora dê pistas dela em toda sua obra – Problema da Poética de Dostoievski (2002); A Palavra na Vida e Palavra na Poesia (2011); Arte e Responsabilidade (1919); etc. Este artigo é resultante da perplexidade que o pensamento bakhtiniano é capaz de produzir aos conhecimentos sobre poética e estudos linguísticos, mas, especificamente, na possibilidade de leitura sobre os poemas de Manoel de Barros e Alberto Caeiro, nos quais encontramos a mesma natureza poética que faz com que desinventemos nosso olhar. Muito embora, como já dito, Bakhtin não tenha defendido uma poética sua, é notada a preocupação com o lugar da palavra, a potencialidade da palavra não apenas como signo verbal, mas ideológico, social e ubíquo; por isto, para nós, poético. A própria natureza transgrediente da palavra, sua exotopia, sua polifonia, cronotopia e dialogia já extravasam o que sistematicamente se propôs a ela, como signo, muitas vezes, monológico. A natureza da palavra, em Bakhtin, nos dá margem para pensar o modo como olhar o mundo e escolher a nossa palavra como contrapalavra responsiva e o papel do poeta/autor/criador[2] como de imensa responsabilidade sobre a prosa trivial da vida.  
Dividiu-se o artigo em três partes fundamentais: primeira, para falar da construção arquitetônica, que Bakhtin faz, entorno daquilo que se entende como sendo sua poética, ou aproximações com o trabalho poético como gênero discursivo, e não somente literário; segunda, para elencar os lugares da palavra e a importância dela na construção da poética bakhtiniana; e por último, olharemos para exemplos da obra de Alberto Caeiro e Manoel de Barros buscando esclarecer a desinvenção do olhar através da teoria bakhtiniana e como a poética é determinada pelo futuro, como o homem.

1.1 A arquitetônica e os gêneros do discurso na construção de uma poética bakhtiniana

Li um livro sobre águas e meninos.

Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.
(...)
Com o tempo descobriu que escrever seria
o mesmo que carregar água na peneira.

[Manoel de Barros]

A arte, para Bakhtin, cria novas formas de relação axiológica com aquilo que já se tornou realidade para o conhecimento e para o ato, o que o leva a afirmar que:
Na arte nós sabemos tudo, lembramos tudo (no conhecimento não sabemos nada, não lembramos nada, não obstante a obra de Platão); mas é justamente por isso que na arte o elemento da novidade, da originalidade, do imprevisto, da liberdade tem tal significado, pois nela há um fundo sobre o qual pode ser percebida a novidade, a originalidade, a liberdade – o mundo a ser conhecido e provado, do conhecimento e do ato, e é ele que arte se apresenta como novo, é pela relação com ele que se percebe a atividade do artista como sendo livre (BAKHTIN, 1998, p. 34).

O artista, ou melhor, o autor-criador, o poeta, não se envolve com o acontecimento como um seu participante direto – pois assim, seria, então, um conhecedor e seu fator ético- mas, ocupa uma posição essencial fora do acontecimento enquanto assistente desinteressado, mas que compreende o sentido axiológico daquilo que se realiza, ou seja, o autor-criador refrata e reflete por meio da arquitetônica de suas obras as ideologias presentes na ideologia oficial e na do cotidiano.
Para se pensar uma poética bakhtiniana é preciso pensar na arquitetônica, na maneira como o autor-criador a partir do seu excedente de visão arquiteta a inter-relação entre o material, a forma e o conteúdo “dentro” de um conjunto de valorações ideológicas em uma relação cronotópica.
No que tange à teoria escrita por Bakhtin, antes de qualquer coisa, gostaríamos de ressalvar que esta pode ser vista como um continuun, pois, ao que parece, os acordes principais foram executados pelas primeiras vezes ainda na década de 20, do século passado (XX) e perpassaram por toda a sua obra. Os conceitos desenvolvidos por ele se entrelaçam e se encontram constantemente inter-relacionados e, por isso, pode-se dizer que fazem parte do todo de uma grande obra sinfônica
Para a escrita de um artigo sobre o que aqui chamamos de “a poética bakhtiniana” faz-se necessária uma incursão nas categorias bakhtinianas de arquitetônica e gêneros do discurso, uma vez que os sujeitos dos textos de BARROS e Caeiro enquanto sujeitos estéticos encontram-se inseridos no universo estético da arte literária e dessa forma fazem parte de um gênero complexo que, por sua vez, encontra-se ancorado aos valores éticos do gênero primário, ou seja, a vida se secundariza na literatura e a literatura se prioriza na vida.
De um modo geral, entendemos por totalidade arquitetônica o projeto enunciativo que envolve as questões dos atos de todo humano, sejam elas (as questões) de ordem relacional ou avaliativa. Vale ainda ressaltar que, para Bakhtin, o sujeito tem de se tornar integralmente responsível por todos os atos de sua vida.

1.2 A palavra e a poética bakhtiniana.
Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.
(...) É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol...
[Alberto Caeiro]
A poesia, entendida aqui como a arte que é realizada por meio de palavras e não só o gênero poético em si, utiliza tecnicamente a língua linguística de modo bem particular; a poesia precisa da língua por inteiro, de todos os lados e com todos os seus elementos; ela não permanece indiferente a nenhuma nuance da palavra na sua determinação linguística. É só na poesia que a língua revela todas as suas possibilidades, pois ali as exigências que lhe são feitas são as maiores: todos os seus aspectos são intensificados ao extremo, alcançam seus limites, é como se a poesia espremesse todos os sulcos da língua, que acaba por se superar a si mesma. Mas, em sendo tão exigente com a língua, a poesia pode superá-la como língua, como determinação linguística.  A poesia não é uma exceção à lei comum a todas as artes: a criação artística definível pela relação com o material constitui a sua superação.
1.3 A poética bakhtiniana em Manoel de Barros e Alberto Caeiro

"O poeta deve saber que tem culpa
 pela prosa trivial da vida."
(Bakhtin)

Em tempos de prosaísmos a poesia liberta. Hoje, mais do que antes, a linguagem mais pura, mais próxima ao que é ontológico e orgânico à vida se faz necessária. Fica aparentemente mais fácil dizer, que estamos cercados de tempos torpes, que estamos néscios de uma transvaloração dos valores. Que estamos desejosos de ouvir filosofias e poesias que busquem uma espécie de ética biopolítica (FOUCAULT e BAKHTIN). Hoje, podemos muitas vezes dizer que estamos em uma crise de abstinência por filosofia, por poesia. Porém, a poesia e a filosofia vivem. Ambas não estão ligadas simplesmente por rima, discursam sobre linguagem, ambas acariciam a textura e a tessitura da língua em busca do revelar de cada coisa, de cada valor adotado ao signo, somado à palavra.  A poesia, a literatura, a filosofia são fontes para as ciências, pois são as manifestações mais sutis e precisas da vida. O poeta acaba por ser a antena das raças, diria E. Pound. A poesia desvela (revela) as máscaras sociais e amarras sociais em Manoel de Barros e Alberto Caeiro.
REFERÊNCIAS
BARROS, M. Memórias Inventadas: A Terceira Infância. São Paulo: Planeta, 2008.
___. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010.
BAKHTIN/VOLOSHINOV. Palavra na vida e Palavra na Poesia. Tradução: Fabrício César de Oliveira e Valdemir Miotello. São Carlos, Pedro & João editores, 2011. 
___.Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução: Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
___. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João, 2010.
___. Questões de literatura e estética. São Paulo: UNESP, 1998.
___. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2006.


[1] Rancière defende que a natureza da política é o dissenso, e não o consenso. O que acaba gerando uma desinvenção do olhar sobre a política e um certo mal-estar na racionalidade. RANCIÈRE, J. Dissenso. In: Crise da Razão. (Org.) Adauto Novaes. São Paulo: Cia das Letras, 1999. E O Desentendimento. São Paulo: Editora 34, 1996.

[2] Preferimos o termo poeta para dar ao autor, criador, artista e/ou transcriador mais proximidade com o que propusemos, que é “uma poética bakhtiniana”. Entendemos que o papel do autor é dar voz e vazão ao poético, por isto, o que neste artigo será chamado por poeta. 

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