segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Marcos Vieira de Queiroz

Argumentação e responsividade na posse eleitoral
 Marcos Vieira de Queiroz (PIBIC/CNPQ/UFOP)[1]
 mvqueiroz7@gmail.com   
Universidade Federal de Ouro Preto – ICHS - DELET

“Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma outra.” (Bakhtin, M; Volochinov - 1929)

Para Bakhtin, a linguagem é fundamentalmente dialógica na medida em que seu acontecimento discursivo, promovido pelo evento da enunciação, seja ela verbal ou não verbal, sempre responde a uma situação específica, ou seja, sempre está “numa estreita dependência das condições históricas da situação social e de todo o curso pragmático da existência”[2], o que constitui, segundo Bakhtin, a psicologia do corpo social que, segundo o mesmo, “se manifesta essencialmente nos mais diversos aspectos  da 'enunciação' sob a forma de diferentes modos de discurso,sejam eles interiores ou exteriores.”[3]  Desta forma, a relação do sujeito com a situação discursiva na qual se encontra só pode ser entendida quando nos voltamos para o material verbal produzido pelo mesmo naquela situação, de modo a analisarmos a produção discursiva daquele sujeito com o intuito de compreendermos, em sentido amplo, o funcionamento discursivo  e a sua relação com a situação em que se manifesta. Eis porque, para Bakhtin, o estudo da manifestação verbal em uma situação específica é relevante, pois, somente através de uma abordagem sociológica do signo e de seu papel enquanto constituidor e definidor das ações dos mais diversos grupos sociais, é que poderemos compreender a fundo o papel da linguagem no acontecimento da existência humana. No entanto, uma reflexão mais filosófica não é o intuito deste ensaio, o qual busca relacionar a presença do método sociológico proposto por Bakhtin (Volochinov), em Marxismo e filosofia da linguagem (1929), com pelo menos duas propostas teórico conceituais da Análise do Discurso, as quais servem para a abordagem dos mais diversos discursos sociais. Sendo elas, a noção de  circunstancias de discurso proposta por Patrick Charaudeau (2008) e as noções de ethos e ethos pré discursivo propostas por Dominique Maingueneau (2008). Tal exercício tem como fundamento apontar a relevância dos escritos de Bakhtin e do campo de conceituações que se criou a partir de sua obra. Tomarei, a título de ilustração, para exemplificar a aplicação dos respectivos conceitos em AD, um acontecimento discursivo bem específico, o da posse eleitoral. O que nos permitirá compreender seu funcionamento discursivo-argumentativo  e seus efeitos possíveis em termos de adesão.
Iniciemos então pela noção de circunstâncias de discurso proposta por Charaudeau (2008), a qual se fundamenta num dos postulados básicos da Análise do Discurso, ou seja, nas condições de produção de determinado discurso, as quais organizam e definem os lugares de fala do sujeito. Sendo que este (o sujeito), na medida em que assimila a atmosfera ideológica da situação na qual se encontra, processo que se da na maioria das veze de forma inconsciente, organiza seus dizeres e o modo de dizê-los de acordo com a situação. A título de ilustração, pensemos numa situação de posse eleitoral, na qual o sujeito que discursa, organiza seus dizeres de modo a reafirmar um compromisso com o seu auditório[4], o qual é constituído por aqueles que na campanha o apoiaram com o voto e se encontram ali para prestigiar a acensão daquele em quem votaram. É uma relação de cumplicidade. O empossado vê-se então numa situação que determina seus enunciados e o sentido do mesmo, fazendo com que ele demonstre uma relação de consideração para com seu auditório, de modo a não lhe causar nenhum estranhamento. Pois, o auditório espera ver através do discurso do empossado a mesma imagem, ou ethos, daquele em quem votou e depositou suas confianças. Definida a circunstância de discurso como “o conjunto dos saberes supostos entre os protagonistas da linguagem”[5], Charaudeau propõe, no escopo de sua teoria Semiolinguística[6], a noção de contrato comunicacional que, segundo o autor “pressupõe que indivíduos pertencentes a um mesmo corpo de práticas sociais estejam suscetíveis de chegar a um acordo sobre as representações linguageiras dessas práticas sociais”.[7] Sendo o contrato o que permite aos sujeitos de uma situação de comunicação jogar com os implícitos em determinadas situações. Galinari (2007), numa leitura de Charadeau, aponta quatro cláusulas presentes no quadro contratual, que são capazes de bem descrever os pontos centrais referentes à situacionalidade de um dado discurso, sendo elas, “a finalidade comunicativa (o sujeito falante está aqui para fazer o quê e para dizer o quê?); a identidade dos parceiros (quem comunica com quem? Quais papéis/estatutos linguageiros eles possuem?); o propósito da troca (qual é o assunto da conversação? Os parceiros comunicam para falar de quê? De quais temas?); as circunstâncias materiais nas quais se realiza o ato de linguagem (em qual ambiente, com quais recursos, valendo-se de qual canal de transmissão?)”[8].  No caso do discurso de posse as respectivas cláusulas se configurariam da seguinte maneira:
·                      finalidade comunicativa – o cumprimento de um decreto de lei que assegura a posse como um direito constitucional do candidato eleito;
·                      identidade dos parceiros – tem-se uma relação de cumplicidade, que ocorre em decorrência de uma afeição política, entre cidadão legitimado (candidato empossado) para com o povo legitimador (cidadãos votantes). Note-se que o empossado não deixa de ser um cidadão, porém, sua identidade discursiva se altera em decorrência do cumprimento do decreto de lei, que o legitima;
·                      propósito da troca – o antigo gênero epidíctico, tratado na Retórica de Aristóteles, se enquadra dentro do que seria o propósito discursivo do discurso de posse, pois aquele que discursa já não precisa mais argumentar, ou seja, utilizar de estratégias com o fim de conquistar o voto e o apoio popular: a eleição é já fato consumado no momento da posse. Superada esta fase, o então candidato eleito terá o seu momento para reafirmar os compromissos e suas qualidades diante do povo. Podendo, quando o seu mandato for uma extensão da gestão anterior, fazer o elogio da mesma e, se a situação for o contrário, fazer um vitupério da gestão anterior, de modo, nos dois casos, a relegitimar sua imagem enquanto político;
·                      circunstância materiais – essas não privilegiam o diálogo, visto estar o empossado em um palanque e o auditório a uma distância razoável do mesmo.

Nota-se então, que a noção de circunstâncias de discurso como o “conjunto dos saberes supostos que circulam entre os protagonistas da linguagem”, e a noção de contrato comunicacional, entendido através das cláusulas que organizam a situação discursivas, ligam-se diretamente aos dizeres de Bakhtin no que tange as dependências do enunciado e de seus modos de organização em relação ao seu contexto socio-ideológico, quando aponta que as “formas de interação verbal acham-se muito estreitamente vinculadas às condições de uma situação social dada e reagem de maneira muito sensível a todas as flutuações da atmosfera social”[9]  Dito isso, passemos então a uma segunda noção utilizada em AD, a qual se relaciona com a noção de responsividade em Bakhtin. Trata-se da noção de ethos-prévio, proposta por Dominique Maingueneau (2008).
Maingueneau desenvolve seus estudos sobre o ethos, ou seja, a imagem que o orador transmite em sua fala, através do estudo da enunciação em situação. Para Maingueneau, essa noção do ethos contido no âmbito do enunciado, ou seja, enquanto produto de uma enunciação manifestada por um enunciador em uma situação discursiva momentânea, é chamada ethos discursivo e corresponde à de Aristóteles[10]. Indo além da reflexão Aristotélica, Maingueneau propõe a noção de ethos pré discursivo, ou seja, uma imagem de si do orador anterior a um dado momento ou presente enunciativo. Para Maingueneau, “não se pode ignorar, entretanto, que o público constrói representações do ethos do enunciador antes mesmo que ele fale.”[11] O ethos pré discursivo poderá ser entendido então como um conjunto de representações acerca do enunciador que povoam um determinado imaginário (principalmente o imaginário do auditório), e que poderão ser identificadas implícita ou explicitamente em uma situação discursiva que envolva tal enunciador, antes que ele tome a palavra ou a caneta/escrita. Em termos bakhtinianos, podemos dizer que o ethos pré  discursivo de determinado sujeito está relacionado a psicologia do corpo social constituidora do mesmo, e se manifesta na medida em que ele (o sujeito) se manifesta verbalmente diante de um auditório que já o conheça e tenha uma imagem prévia de sua pessoa. De modo, podemos dizer, que o sujeito enunciador responde à estas representações construídas pelo seu auditório, refletindo ou refratando-as. Numa situação especifica, como a da posse eleitoral, estas imagens que o auditório constrói do orador, antes mesmo dele se manifestar verbalmente, servem como instância responsiva do mesmo. Note-se, que em tratando-se da esfera política, as imagens prévias de determinado candidato eleito são construídas ainda em período de campanha, sendo fruto do embate político eleitoral e da propaganda política, de modo que, em situação de posse, o candidato eleito vê-se na oportunidade de rebater todo e qualquer tipo de imagem negativa referente a sua pessoa e a seu grupo político. Imagens muitas vezes construídas pelo discurso de oposição. Numa situação oposta, o empossado também se refere a uma imagem prévia de sua pessoa quando busca reafirmar suas qualidades positivas diante o auditório. Imagens construídas pela propaganda política do empossado. O que procuro destacar com a noção de ethos pré discursivo apontada por Maingueneau não é sua correlação direta com outra categoria proposta por Bakhtin, o que me parece ocorrer mais claramente com Charaudeau como já foi demonstrado, mas que, ao formular tal categoria, ou subcategoria, Maingueneau leva em consideração o princípio dialógico (responsivo) da linguagem, ou seja, o princípio de que todo enunciado responde não simplesmente a organização pragmática de uma situação, mas também, responde as ideologias e representações desta mesma situação. Pensemos então que o ethos pré discursivo funciona como uma representação que o auditório tem do orado antes mesmo que ele tome a fala e, no momento em que toma a palavra, o mesmo (orador) responde a essas representações na medida em que achar necessário para o seu discurso. Entenda-se apenas que responder à um determinado enunciado não equivale a replicá-lo, negá-lo, mas, simplesmente responder, demonstrando assim o seu acontecimento prévio, anterior ao dizer que se remete à ele.
A tentativa de apontar a presença das considerações de Bakhtin acerca da funcionalidade do discurso nas reflexões teórica feitas em Análise do Discurso, servem à um duplo motivo. Primeiramente, o de apontar a relevância das reflexões de Bakhtin e seu círculo para este campo de estudos que se desenvolve a partir da segunda metade do século XX, e que cada vez mais ganha forças no âmbito da pesquisa acadêmica. Em segundo lugar, enriquecer este campo de estudos com um aprofundamento epistemológico das categorias conceptuais presentes na AD, de modo a demonstrar as instâncias responsivas as quais as mesmas remetem, o que exemplifica, mais uma vez, o caráter dialógico, responsivo da linguagem em todas as suas manifestações. Que fique claro apenas que o exercício a que me propus, o de relacionar o método sociológico presente em Bakhtin (1929)  com algumas categorias conceituais presentes na Análise do Discurso, principalmente a de vertente francesa, representadas aqui pelos estudos de Charaudeau (2008) e Maingueneau (2008), é apenas um pequeno exemplo do que pode ser demonstrado quanto a relevância do pensamento de Bakhtin e seu círculo para este campo de estudos tão vasto que é a Análise o Discurso.
Bibliografia:
ARISTÓTELES. Retórica; Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005.
BAKHTIN, M; VOLOCHINOV.  Marxismo e filosofia da linguagem. 11° Ed. Editora Hucitec, São Paulo, 2004.
CHARAUDEAU, P. Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008
MAINGUENEAU, D. Ethos, cenografia e incorporação. In: AMOSSY, R. Imagens de si no discurso. São Paulo: Contexto, 2008.
PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado de Argumentação: a Nova Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2002.



[1]             As reflexões desenvolvidas nesse pequeno ensaio se encontram no escopo das discussões desenvolvidas junto ao projeto “A argumentação nos discursos sociais: por uma metodologia de análise”, do qual participo com o Profº Melliandro Mendes Galinari, no Departamento de Letras da Universidade Federal de Ouro Preto.
[2]             BAKHTIN, M; VOLOCHINOV - 2004, p. 64
[3]             Ibdem, p. 42
[4]             A noção de auditório é emprestada de Perelman & Olbrechts-Tyteca no Tratado da argumentação: a nova retórica, onde o mesmo é definido como “o conjunto daqueles que o orador quer influenciar com a sua argumentação” (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA – 2002, p. 22)
[5]             CHARAUDEAU – 2008, p. 32
[6]             Para um estudo mais aprofundado da Teoria Semiolinguística proposta por Charaudeau ver: CHARAUDEAU, P. Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008
[7]             CHARAUDEAU – 2008, p. 56
[8]             GALINARI – 2007, p. 38
[9]             BAKHTIN, M; VOLOCHINOV – 2004, p. 42
[10]           Para Aristóteles (2005, p.96) “as provas retóricas apresentadas pelo discurso são de três espécies: umas residem no caráter moral do orador [ethos]; outras, no modo como se dispõe o ouvinte [pathos]; e outras, no próprio discurso, pelo que este demonstra ou parece demonstrar [logos]” 'colchetes nossos'
[11]           MAINGUENEAU – 2008, p. 71

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