segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Adriane de Castro Menezes Sales

Profissão de tradutor e intérprete da língua brasileira de sinais e a LIBRAS: ser e não-ser, eis a questão!
Adriane de Castro Menezes Sales
Doutoranda na Universidade Federal de São Carlos – PPGEEs

Todas as palavras evocam uma profissão, um gênero,
uma tendência, um partido, uma obra determinada,
uma pessoa definida, uma geração. [...] Cada palavra
evoca um contexto ou contextos nos quais ela viveu
sua vida socialmente tensa; todas as palavras e
formas são povoadas de intenções. [...] A linguagem
não é um meio neutro que se torne fácil e livremente
a propriedade intencional do falante, ela está povoada
ou superpovoada pelas intenções de outrem. Dominá-la
e submetê-la às próprias intenções e acentos é um
processo difícil e complexo.
Mikhail Bakhtin[i]

Em primeira instancia, cabe considerar que este texto é, em parte, a continuidade de um diálogo iniciado em outro contexto, numa oportunidade de reflexões e significações que resultou na escritura de um trabalho, pensamentos, acerca dos diversos matizes dos discursos sobre ‘inclusão escolar’ quando direcionados para a educação de alunos surdos. Pensar sobre o signo lingüístico como materialidade ideológica, sob a ótica da ética do ato responsável, que emerge do diálogo, da compreensão ativo-responsiva, é um despertar de ressonâncias ideológicas que refletem e refratam os nossos e novos sentidos.
A partir destas premissas é que elegemos como corpus de análise deste texto os discursos constituídos nas políticas públicas referentes à Lei Nº. 10.436/02 (regulamenta a Língua Brasileira de Sinais) e seu embricamento com a Lei Nº. 12.319/10 (regulamenta a profissão de Tradutor e Intérprete da Língua Brasileira de Sinais – TILS), ou melhor, as desconexões e obscuridades instauradas na concepção e nas práticas relacionadas à Língua de Sinais – que, acima da incoerência teórico-prática entre o dito e o feito dos/nos discursos inclusivos, nos levou a uma grande inquietação: o Decreto nº. 5.626/2005, que instituiu legalmente a “educação bilíngue”, propõe, relativamente a ela, no Cap. VI, art. 22, o trecho abaixo transcrito:
[...] I – escolas e classes de educação bilíngue, abertas a alunos surdos e ouvintes, com professores bilíngues, [...];
II – escolas bilíngues ou escolas comuns da rede regular de ensino, [...] cientes da singularidade lingüística dos alunos surdos, bem como a presença de tradutores e intérpretes de Libras – Língua Portuguesa. (grifos nossos)

Mas, a que se refere a “educação bilíngue”?
E, ainda: quais parâmetros teóricos e práticos utilizar para problematizar e/ou compreender a profissão (função) do “tradutor intérprete”, definida na Lei nº. 12.319/10 (BRASIL, 2010), se a Lei nº. 10.436/2002 (BRASIL, 2002) assim reconhece a Língua Brasileira de Sinais – Libras?
[...] Entende-se como Língua Brasileira de Sinais – Libras a forma de comunicação e expressão, em que o sistema linguístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constituem um sistema linguístico de transmissão de idéias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil (grifos nossos).
A função do tradutor, bem como de uma proposta de educação bilíngue, não são interdependentes à existência e relação entre duas línguas? A função do tradutor está claramente posta: “[...] realizar interpretação das 2 (duas) línguas de maneira simultânea ou consecutiva e proficiência em tradução e interpretação da Libras e da Língua Portuguesa” (BRASIL, 2010). E uma proposta de educação bilíngue? Sem por em discussão fatores considerados como interferentes e/ou intrínsecos nas práticas educativas bilíngues, tais como fatores históricos, sociais, ideológicos, psicológicos, além das relações de poder, ou, ainda, as diversas perspectivas teóricas de desenvolvimento de projetos bilíngues (MEGALE, 2006), em todos os casos é condição sine qua non que existam duas línguas em jogo.
Não se trata de uma roupagem linguística, mas de uma engrenagem discursiva na qual o discurso oficial se materializa com força de lei – à qual as normas de conduta conferem autoridade e poder legitimado, que impõem argumentos de variados contornos para sustentar um pseudo-monolinguismo, justificado, dentre outros, por argumentos de identidade e unidade nacional.
[...] A falácia do decantado monolinguismo nacional brasileiro, a cada dia que passa, fica mais evidente. [...] Nosso País apresenta vários grupos de falantes de outras línguas, caracterizando-se como uma nação alta e ricamente multilíngue. [...] O olho vedado da sociedade em geral para essa realidade, inclusive entre os ditos intelectuais, se mostra mais perverso, porém, em relação à língua dos “sinalizantes” brasileiros. Se não ignorada totalmente, essa forma natural e sofisticada de comunicação, como o fez Agostinho de Hippo Regius12[ii] em relação às crianças mortas sem batismo, é colocada num confortável limbo linguístico, mas limbo! (VEGINI; VEGINI, 2009, p. s/n).

Além disso, estes corpus (leis – documentos oficiais) demarcam lugares e poderes bastante diferentes e divergentes entre os grupos envolvidos e tentam oprimir as diversas e diferentes vozes sociais em relação às tensões e confrontos entre a ideologia dominante e a ideologia dominada. Segundo Cury (2002, p. 246):
O contorno legal indica os direitos, os deveres, as proibições, as possibilidades e os limites de atuação, enfim: regras. Tudo isso possui enorme impacto no cotidiano das pessoas, mesmo que nem sempre elas estejam conscientes de todas as suas implicações e consequências.
Nestes termos, as políticas públicas, como partes de um corte social, são representativas de conjunto de intencionalidades, que solicitam nossa leitura – das “linhas e entrelinhas” – e convocam contra-palavras, ou melhor, ações responsivas. Pensar sobre “[...] a política educacional implica pensar práticas sociais vividas por sujeitos concretos que representam forças sociais diferenciadas e em luta constante” (GARCIA, 2007, p. 132), das quais podem resultar tanto a manutenção e reprodução da ordem social estabelecida, quanto a subversão desta ordem (MIOTELLO, 2005).
[...] as Leis e Documentos oficiais são instrumentos de luta para efetivação dos direitos de cada cidadão. [ainda que se entenda] que os textos legais representam a política e devem ser entendidos como dimensão de um processo contínuo “cujo lócus de poder está constantemente mudando” (SHIROMA; CAMPOS; GARCIA, 2005, p. 433).

Metaforicamente, os textos, em sua interrelação, remontam às diferentes vozes de Babel – onde o horizonte de possibilidades de significação gera luta –, ainda mais latentes, que envolvem relações de força produzidas por cada grupo/vozes em função das suas expectativas sociais particulares – particulares não no sentido de individuais, mas de diferentes planos de relação, ação e reflexão dos agentes sociais envolvidos. Ângulos particulares que, na perspectiva bakhtiniana de singularidade, de sujeito único, ocupam diferentes lugares, com diferentes (por vezes divergentes) leituras do mundo, entre os quais o encontro só seria possível a partir da alteridade.
Para Bakhtin, nos constituímos na relação alteritária com o outro, pois é na alteridade (no encontro) com o outro que temos a possibilidade de ampliar nosso horizonte de sentidos sobre nós mesmos, a partir da visão que o outro nos possibilita, num processo em que, no encontro, cada ser se reflete no outro e refrata-se – fato possível porque cada um ocupa seu lugar exotópico em relação ao outro.
[...] alteridade é a própria possibilidade do meu horizonte, da ampliação do meu horizonte. Eu me vejo no outro! E o outro é um horizonte sem fim para mim. Nele, no outro, há sempre uma nova perspectiva, sempre um novo ângulo no e pelo qual crio e recrio a idéia do eu. Falo idéia prá ser delicadamente fiel (aoeidos) filosófico fenomenológico: eu tenho para mim uma idéia de mim mesma, conforme os olhares dos outros (dos alter egos) essa imagem (eidos) ganha nuances distintas, contornos sutis. (Blogspot - gegelianos[iii])

Compreender o sentido do enunciado vai além da apreensão/compreensão do sinal linguístico, em se tratando de responsividade, é apreender as vozes em relação, considerar a relação entre os elementos que interferem na produção de sentidos dos enunciados, e que podem encontrar-se fora da realidade concreta do momento enunciativo, pois “[...] a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor” (BAKHTIN, 2000, p. 116).
É essencial considerarmos a relação eu/outro, uma vez que a subjetividade é inerente aos sujeitos. Para Bakhtin (2003), o enunciado pressupõe um ato de comunicação social e é a unidade real do discurso. O enunciado se constitui a partir da fala que, em uma situação discursivo/interativa, é representativa da intenção dos falantes (idem).
Compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica. [...] A compreensão é uma forma de diálogo; ela está para a enunciação assim como uma réplica está para a outra no diálogo. Compreender é opor à palavra do locutor uma “contrapalavra” (BAKHTIN, 2003, p. 137).

Consideradas estas particularidades, daremos um passo à frente, um deslocamento para a realidade concreta e cotidiana dos sujeitos envolvidos em nossa discussão, os sujeitos surdos e os tradutores interpretes de língua brasileira de sinais, na tentativa de apreender quais as implicações destes discursos e incongruências nas relações e interações ocorridas no espaço escolar incidem diretamente sobre os TILS e sua participação; envolvimento com os alunos; com a comunidade escolar e para o acesso destes alunos aos conhecimentos e informações acadêmicas e sociais, que constituem os processos de construção de conhecimentos.
Segundo Souza (2007, p. 160), o ato educativo decorre de linguagem...
De dois sujeitos que se falam, se escutam e são falados pelo Outro numa permanente intromissão desse terceiro – o Outro – elemento que põe em cena, do ponto de vista psíquico, “algo” que excede aos dois corpos visíveis – o do estudante e de seu intérprete.

Nesse sentido, e dentro de uma perspectiva estética fundamentada na concepção bakhtiniana, o papel do tradutor é, primeiramente, de aproximação, de conhecimento do e sobre o outro com quem irá (inter)agir, no caso, os tradutores intérpretes de língua de sinais em relação aos professores, alunos surdos e ouvintes. Para tanto,
O primeiro momento da minha atividade estética consiste em identificar-me com o outro: devo experimentar – ver e conhecer – o que ele está experimentando, devo colocar-me em seu lugar, coincidir com ele [...]. Devo assumir o horizonte concreto desse outro, tal como ele o vive (BAKHTIN, 2000, p. 45).

Destacamos a questão não apenas para definir nosso ponto de partida sobre a atividade estética, mas para, neste ensejo, dar ênfase a questões como as discutidas por Sobral (2008a, p. 132):
Cabe ao intérprete conhecer a situação do conjunto de surdos no âmbito da cultura brasileira. Isso apresenta dois aspectos: de um lado, trata-se de uma língua não oral, de uma maneira não oral de perceber, de pensar e de se exprimir, no interior de uma cultura oral e em contato com uma língua oral dominante; de outro, o surdo tem uma dada imagem do interior dessa cultura que nem sempre o respeita [...]. A situação do surdo não é a mesma do ouvinte; não se trata apenas de ter outra língua, mas ter uma língua não oral num ambiente sociocultural oral e de coexistir como surdos num território de ouvintes.
Além destas singularidades, pensar sobre a tradução/interpretação, mediando situações didático-pedagógicas em ambientes educacionais, nos quais circulam informações e conhecimentos das mais diversas naturezas e especificidades, exige do TILS diferentes saberes e condições de atuação, tais como: domínio dos conteúdos escolares em uso, conhecimentos sociais, políticos e culturais, além das idiossincrasias do grupo de alunos e professores com os quais atuará. E a posição a ser ocupada por eles (TILS) não pode se distanciar desta situação concreta – realidade social e histórica.
Apoiados, novamente, em Sobral e seus apontamentos sobre Bakhtin, acreditamos na necessidade de dar acabamento[iv] a nossa discussão, refletindo a tradução, também, como ato ético. Segundo Sobral (2008b, p. 224), a filosofia bakhtiniana do ato ético refere-se à
[...] responsividade ética aos outros sujeitos. Para Bakhtin, “não há álibi na existência”, e os atos do sujeito, sejam ou não voluntários, são responsabilidade sua, ou melhor, “responsibilidade” sua, isto é, responsabilidade pelo ato e responsividade aos outros sujeitos no âmbito das práticas em que são praticados os atos.

O ato da tradução envolve uma escala multidimensional de significantes e significados que desvelam as dimensões, a profundidade e a alta complexidade da sua atuação e a interação verbal, pois tem relação direta com todos os sujeitos que participam destas interações, tanto na constituição de suas identidades quanto de suas subjetividades – além do diálogo, que se constitui uma das mais importantes formas de realização da língua.
Para a efetivação de uma proposta educacional bilíngue são necessárias algumas condições prévias e concomitantes, que têm valor determinante para o êxito do processo. Dentre elas, podem-se enumerar elementos, como estímulo precoce das crianças surdas ao aprendizado da língua de sinais (para o qual não demandam condições especiais de ensino/aprendizagem) para, então, expor as mesmas a situações formais de ensino da língua da comunidade ouvinte (no nosso caso, a língua portuguesa); condições de entrada da língua de sinais no espaço escolar, com status de permanência e não de concessão; além do uso amplo da língua pela comunidade escolar, para que não tenhamos um isolamento e restrição de diálogo e interação apenas entre os pares surdos e deles com os intérpretes.
Enfim, ainda que as possibilidades de desdobramentos e horizontes possíveis de significados acerca destes atos/pensamentos sejam inúmeras, traz-se à baila uma ultima (por hora...) consideração: que o dúbio (re)conhecimento da Libras, pois ainda que nomeada não foi legitimada como Língua Brasileira de Sinais,  dentro da esfera política e ideológica, reforça a imagem de que esta se refere, ou melhor, identifica os sujeitos como “aqueles que são uma minoria lingüística” em relação ao padrão estabelecido na cultura e no meio social, o que intensifica, na maioria das situações observadas, entraves ao uso da Libras por pessoas externas às entidades e comunidades surdas, nas quais incluímos todas as pessoas ligadas direta ou indiretamente a esses sujeitos.

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2000. 203 p.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006. 203 p.
BRASIL. Lei Federal n. 10.436 de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) e dá outras providências. Acesso em: abril/2010.
______. Lei n 12.319, de 1º de setembro de 2010. Regulamenta a profissão de Tradutor e Intérprete da Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS. Acesso em: abril/2011.
CURY, Carlos Roberto Jamil. Direito à educação: direito à igualdade, direito à diferença. Cadernos de Pesquisa. Campinas, SP: Autores Associados, n. 116, pp. 245-262, julho 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100- 15742002000200010&lng=en&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: julho/2010
GARCIA, Rosalba Maria Cardoso. Reflexões teórico-metodológicas acerca das políticas para a Educação Especial no contexto educacional brasileiro. Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade. Salvador, BA: UNEB, v. 16, n. 27, pp. 131-142, janeiro/junho 2007. Disponível em: <http://www.revistadafaeeba.uneb.br/anteriores/numero27.pdf>. Acesso em: julho/2010.
SHIROMA, Eneida Oto; CAMPOS, Roselane Fátima; GARCIA, Rosalba Maria Cardoso. Decifrar textos para compreender a política: subsídios teórico-metodológicos para análise de documentos. Perspectiva: Revista do Centro de Ciências da Educação. Florianópolis: UFSC, n. 2, pp. 427-446, julho/dezembro 2005. Disponível em: <http://www.perspectiva.ufsc.br/perspectiva_2005_02/11_artigo_eneida_rosela ne_rosalba.pdf>. Acesso em: julho/2010.
SOBRAL, A. U. Dizer o "mesmo" a outros: ensaios sobre tradução. 1. ed. São Paulo: SBS Editora, 2008a. v. 1. 143 p.
_________. O Ato “Responsável”, ou Ato Ético, em Bakhtin, e a Centralidade do Agente. Signum: Estudos Linguisticos, Londrina, n. 11/1, p. 219-235, jul. 2008.
VEGINI, V. ; VEGINI, R. L. . Articuladores sintáticos e flexão verbal num texto produzido por um portador de necessidades especiais. In: II Encontro de Educação: interculturalidade, políticas públicas e Educação escolar, 2009, Rolim de Moura e Vilhena. II Seminário de Educação: interculturalidade, políticas públicas e Educação escolar. Porto Velho : Universidade Federal de Rondônia, 2009
___________________________________________________________________________
[1] BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 4 ed. São Paulo: Editora UNESP, 1998. 418p. (p. 100)
[1] Região da Numídia, Norte da África: 354-430 (referência do texto original).
[1] Disponível em: http://gegelianos.blogspot.com/2008/01/alteridade-parte-ii.html. Acessado em: 27 de janeiro de 2011
[1] Noção de acabamento, também centrada em Bakhtin, na qual “só um outro pode nos dar acabamento e somente nós poderemos dar acabamento a um outro. Cada um de nós se situa num determinado horizonte e necessita do outro para completar o que falta ao nosso horizonte de visão.” (LOPES, 2005)


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