segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Michele Viana da Silva

Arendt e Bakhtin: a riqueza da diversidade humana
Michele Viana da Silva[1]         
Universidade Federal de São Carlos

Arendt e Bakhtin: a riqueza da diversidade humana

Nessas primeiras palavras, gostaria de situar você, leitor-pensador, quanto ao que proponho discutir nesse breve artigo. À luz de algumas ideias de Bakhtin e Arendt pretendo pensar as relações sociais como relações constitutivas fundantes, para tanto, sugiro uma reflexão a partir de “Mitos Bíblicos: fundamentos das percepções judaico-cristãs da linguagem” de Geraldi (2010) para pensar a questão da identidade e da unidade como formas de apagar (e de) excluir a diferença, a alteridade. Geraldi (idem) nos lembra da nossa capacidade de construir novas compreensões do passado, pois este não se coloca fechado e inalterado, mas está sempre sendo reconfigurado.
O autor se coloca uma questão: “Quais seriam os sistemas e procedimentos de vigia e punição que controlam a língua e seus usuários?” Ater-me-ei a três fundamentos bíblicos que Geraldi (2010) retoma para “aquilatar o peso da tradição em que se move a reflexão sobre a linguagem, as línguas e suas aberturas” (GERALDI, 2010, p.69). O primeiro episódio bíblico de que o autor trata é o da Torre de Babel, em que todos são um só povo e falam uma só língua. O castigo de Deus é confundi-los, uma vez que cada um passa a falar uma língua diferente. A diferença é, pois, castigo. O segundo episódio[2] em que os guardas identificavam os efraimitas pela pronúncia da palavra “Chibólet”, ou melhor, pelo fato de não saberem pronunciá-la corretamente, pois diziam “Sibólet”. Dessa forma, não apenas eram impedidos de fugir, como também eram degolados.  O terceiro episódio que o autor nos recorda é o de Pentecostes, em que embora falassem em diferentes línguas, o discurso era o mesmo e tinha o mesmo sentido. Segundo Geraldi (2010), esses três episódios fundam três mitos respectivamente: “o da unidade perdida e o da diferença como castigo divino”; “o mito da identidade” e “o da tradutibilidade” (idem, p.71).
A língua ocupa o papel de controle, de poder. As forças em sua direção fazem com que se construam discursos hegemônicos excluindo os demais, marginalizando-os. Perde-se a riqueza dos diferentes pontos de vistas, dos diferentes valores: “Onde há múltiplas línguas, há múltiplas formas de ver o mundo” (GERALDI, 2010, p. 73).
Dessa forma, a palavra se torna o território comum, em que transitam diferentes construções axiológicas do mundo. Esse território comum representa um espaço de embates entre os sujeitos, uma vez que seus interesses divergem um do outro. O discurso se torna, dessa maneira, a possibilidade real de detenção da verdade e, consequentemente, de controle de condutas. Miotello (2001) nos ajuda a compreender como o jogo discursivo é responsável por defender e legitimar certas idéias de forma que pareçam interesses de todos à medida que, como lembra o referido autor, ”apagou-se o sujeito em detrimento do cidadão” (MIOTELLO, 2001, p.18). Esse apagamento diz respeito a uma macro-construção da subjetividade no pensamento moderno que tende a eliminar as diferenças dos sujeitos.

Em defesa dos múltiplos olhares
Tendo-nos colocado diante do problema da identidade cuja raiz remonta a milhares de anos, colocamo-nos na perspectiva dos múltiplos olhares, não como castigo, ou como perda de identidade, mas como necessários. Buscamos em Arendt e em Bakhtin reflexões que têm em seu centro a diversidade como ponto fundamental, como totalidade do mundo. Arendt, em “A Promessa da Política” (2008) faz um percurso em que nos coloca diante de grandes pensadores, como também de grandes acontecimentos históricos para pensar a condição da política.  Arendt nos lembra que a pluralidade humana em Gênese nos diz que Deus não criou o homem, mas macho e fêmea os criou.
“Assim é, primeiramente, no sentido de que nenhum ser humano jamais existe no singular, o que dá à ação e ao discurso sua importância especialmente política como as únicas atividades que são não apenas afetadas pelo fato da pluralidade, como todas as atividades humanas, mas completamente inimagináveis fora dela” (ARENDT, 2008, P. 108)

Para Arendt, não podemos pensar apenas no homem, mas na pluralidade humana, ou seja, em homens e mulheres distintos e que, ao mesmo tempo, são iguais, pois são humanos, o que garante sua igualdade e a qual é manifesta na diferença absoluta de um igual em relação ao outro. Para Arendt: “Se, por conseguinte, ação e discurso são as duas atividades políticas por excelência, diferença e igualdade são os dois elementos constitutivos dos corpos políticos” (ARENDT, 2008, p.109). Dessa forma, a essência da política é a pluralidade humana porque é ela que assegura as diferenças de cada um. Ao retomar a doxa de Sócrates: “aquilo que me parece”, que nada tem a ver com algo totalmente subjetivo ou arbitrário, tampouco, absoluto e válido para todos, pois o mundo se revela de forma diferente aos homens, Arendt enfatiza o fato de Sócrates buscar em cada um sua verdade, ou seja, buscar o modo como o mundo se apresenta a cada um. Essa pluralidade tão importante a Sócrates[3] é destruída pela tirania da verdade de Platão, que não buscava conhecer a verdade do outro (como o fazia Sócrates), mas buscava A verdade. Platão inicia o movimento em direção a uma unidade, a uma identidade.
Na perspectiva bakhtiniana, a alteridade constitui a subjetividade, para o sujeito se constituir, ele, necessariamente, precisa do outro, que lhe fornece a compreensão de si mesmo. O sujeito está sempre se construindo, mediante o outro, na relação com o outro. Os sujeitos são sempre inconclusos. Da mesma forma, Bakhtin (2004), em O Freudismo, afirma que o homem não é apenas biológico, mas social e cultural. Da mesma maneira, critica o subjetivismo idealista e o objetivismo abstrato, pois o primeiro não reconhece o outro como alteridade fundante do eu e o segundo apaga a atividade do sujeito ao lhe conferir um papel passivo no jogo com o mundo. Sua crítica revela o princípio dialógico em que o sujeito fala para um outro necessariamente. A construção da subjetividade se realiza na relação com o outro; o sujeito está diante do outro que lhe é constitutivo. Bakhtin (2003) nos fala a respeito dessa relação em “O autor e a personagem”[4], a imagem do eu, na sua totalidade, só pode ser fornecida pelo outro (BAKHTIN, 2003).
 Ponzio (2008) considera uma revolução a proposta de Bakhtin quanto à construção da subjetividade na medida em que a identidade se constrói a partir da alteridade, do diferente. É por meio do social que a interação comunicativa acontece e os sujeitos se constroem. Trata-se de conceber sujeitos que desempenham papéis ativos, em uma relação em que o “eu” e o “outro” são valores-centro.
Essa completude que é dada pelo outro pode também ser aproximada à ideia de Arendt (2008) quanto à totalidade do mundo, a qual só pode ser garantida pela diversidade. Segundo a filósofa, o mundo se constitui porque existem perspectivas, porque é visto de formas diferentes em momentos diferentes, se, pois um determinado povo é aniquilado:
 “...não se trata meramente de um perecimento de um povo, de uma nação ou mesmo de um dado número de indivíduos, mas da destruição de uma parte do nosso mundo comum, de um aspecto do mundo que se nos revelou até agora e que nunca mais voltará a se revelar” (ARENDT, 2008, p.237).

Dessa forma, a existência de vários povos no mundo que se relacionam entre si permite um mundo maior e mais rico, ou seja, quanto mais pontos de vistas uma nação tiver mais aberta ao mundo ela estará.
Cabe-nos ainda uma última aproximação, que diz respeito à incompletude do sujeito bakhtiniano, (que também está relacionado ao conceito de excedente de visão) trata-se de uma relação fundante de incompletude, pois sua completude está no movimento em direção ao outro: “para viver preciso ser inacabado, aberto para mim – ao menos em todos os momentos essenciais – preciso ainda me antepor axiologicamente a mim mesmo, não coincidir com a minha existência” (BAKHTIN, 2003, p. 11). Arendt (2008) nos apresenta o homem como esse sujeito também incompleto que se faz sempre perguntas, essas não respondíveis: “Ao fazer as perguntas finais, as perguntas irrespondíveis, o homem se estabelece como um ser fazedor-de-perguntas” (Idem, p.78). Para ela, se o homem perdesse a capacidade de fazer “as perguntas irrespondíveis” perderia sua faculdade de fazer as “perguntas respondíveis” (cientificamente respondíveis), não seria mais um ser “fazedor-de-perguntas”, culminando no fim da ciência e no fim da filosofia.

À guisa de conclusão
Muitos são os acontecimentos e discursos que ainda nos cercam buscando cercear diferentes posições, diferentes olhares, forçando uma identidade mediante ao apagamento das diferenças.  Fico me perguntando o que Bakhtin e Arendt nos responderiam caso perguntássemos a eles: Devemos tolerar o outro que é tão diferente de mim? Penso que responderiam (de formas diferentes, mas nessa direção talvez): devemos aprender com esse outro algo que só ele pode nos mostrar a respeito do mundo. Grandiosas são essas reflexões em torno da pluralidade humana, dos dois valores centro em jogo (o eu e o outro, bakhtinianos) como forma de enxergar o mundo em uma ordem que só pode ser dada pela diversidade, pela diferença.
Em “A Promessa da Política”, Arendt (2008) nos recorda os acontecimentos políticos mais importantes do século XX, tais como, guerras, revoluções, desastres. Tais ações humanas, digamos, demasiadamente humanas, são tomadas em sua reflexão para discutir a terrível falta de significado da política, cuja solução seria compreender que o sentido da política é a pluralidade humana.

Referências bibliográficas
ARENDT, H. A Promessa da Política. Jerome Kohn [org.] Rio de Janeiro: DIFEL, 2008.
BAKHTIN, M. O Freudismo. São Paulo: Perspectiva, 2004.
___. O autor e a personagem. In: Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
GERALDI, J. W. Ancoragens: estudos bakhtinianos. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
PONZIO, A. A revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideología contemporânea [coordenador de tradução Valdemir Miotello] São Paulo: Contexto, 2008.


[1][1] Membro do Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso  - GeGe e doutoranda em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos.
[2] Juízes, Capítulo 12, versículos 5 e 6. Trata do episódio em que se um fugitivo de Efraim tentasse passar, os guardas lhe perguntavam se ele era efraimita, diante da resposta negativa, os aguardas pediam-lhe que pronunciasse a palavra “Chibólet” como forma de identificar o estrangeiro.
[3] É nesse sentido, que o ‘sei que nada sei’ socrático revela o não ter a verdade para todos, ou seja, não poder saber a verdade do outro sem que lhe seja perguntado (ARENDT, 2008), daí seu conhecido método, a maiêutica, que pressupunha o parto de ideias, ajudar as pessoas a dar à luz suas ideias.
[4] Bakhtin (2003) nos oferece uma reflexão acerca do acontecimento estético, que para ele, necessita de um distanciamento. Só dessa forma, há a possibilidade de um acabamento que constitui o acontecimento estético.

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