quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Robson Borges Rua

A des(construção) da imagem do sujeito social: atividade responsiva do fenômeno da interação verbal
Robson Borges Rua
nosboraur@hotmail.com
Universidade Federal do Pará (UFPA)

“o discurso se encontra com o discurso
do outrem e não pode deixar de participar,
com ele, de uma interação viva e tensa.”
Bakhtin (1988, p.88)

Há tempos que estudiosos da linguagem desenvolvem pesquisas na área da linguística, com a finalidade de perceber como a língua é utilizada no ato de uma interação verbal, e sobretudo, como essa interação verbal é conduzida pelos interlocutores, uma vez que estes são sujeitos sociais que dialogam por meio de enunciados, os quais transitam pelo filtro ideológico dos interlocutores, possibilitando assim, o efeito responsivo ativo de cada sujeito, diante de determinadas situações.
O que impulsiona o homem a desenvolver a linguagem é o contato deste com os elementos da natureza. Koch (2009, p.17) menciona o fato de que a relação homem/homem e homem/natureza é mediada por símbolos, ao passo que a relação homem/linguagem baseia-se nos postulados da semântica. Logo, a autora afirma que a interação social fundamenta-se na argumentatividade dos fatos, ou seja, por meio desta “o homem, constantemente, avalia, julga, critica, isto é, forma juízos de valor.” Assim, constroe-se o discurso em que o sujeito, enquanto produtor de enunciados, tanto pode refutar quanto defender uma ideia, com a intenção de conquistar a adesão da plateia ao posicionamento em questão.
Meyer (2008, p.32) sustenta a ideia de que o convencimento do interlocutor diante de um discurso, pauta-se na consistência dos argumentos defendidos por um sujeito, o qual deve considerar, para tal efeito, a expectativa de seu destinatário, e além disso, a cultura e a ideologia são também fatores determinantes para conquistar a audiência. Este último fator merece uma atenção especial, pois a ideologia é algo que é externo ao homem, ou seja, ela se enraíza no ser social a partir de olhares reflexivos acerca desse objeto, que pode ser um simples objeto, uma palavra, um discurso e também o próprio homem. Bakhtin (1995, p.31) ressalta que a ideologia é o reflexo de qualquer corpo material que ocupa lugar no espaço, porém, o que o torna ideológico é a carga comunicativa que é atribuída àquele objeto.
Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas, ao contrário deste, ele também reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é exterior. Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo o que é ideológico é um signo.

Desse modo menciona-se mais uma vez a teoria de Koch (2009), em que a relação homem/homem e homem/natureza não se baseia somente na semântica das palavras, mas também na força da coesão que os símbolos representam no ato enunciativo.
Bakhtin (1995, p.35) afirma que:

Os signos só podem aparecer em um terreno interindividual. Ainda sim, trata-se de um terreno que não pode ser chamado de “natural” no sentido usual da palavra: não basta colocar face a face dois homo sapiens quaisquer para que os signos se constituam. É fundamental que esses indivíduos estejam socialmente organizados, que formem um grupo (uma unidade social): só assim um sistema de signos pode constituir-se.

Para a ilustração da ideia de signo, anteriormente citada, tomemos como exemplo o cenário político. Se por ventura um parlamentar do partido do PSDB fosse convidado por um integrante do partido do PT para um jantar, e que nesse evento o integrante do tucano houvesse que sentar em uma cadeira qualquer, certamente tal fato não provocaria repercussão. No entanto, se o contexto fosse outro em que o país estivesse no período de eleição, e se o mesmo parlamentar do PSDB, agora, fosse convidado a colocar no peito uma pequena estrela, certamente este fato seria passível de ganhar destaque nas manchetes de jornais.
Diante disso, o que se deve considerar são os contextos de produção dos fatos, pois uma simples cadeira sem nenhuma carga comunicativa atribuída sobre si, não seria capaz de atrair a atenção de um mega-destinatário, ao passo que a estrela representaria uma afronta para o parlamentar dos tucanos. Mas essas inferências só são possíveis porque o último objeto, a estrela, está carregada de cargas informativas. Por isso, defende-se nesse trabalho a idéia de que a ideologia é um fenômeno externo, pois se não fosse o contexto das eleições, a estrela seria apenas uma estrela, e não um signo dotado de discurso, que possibilitaria a compreensão responsiva ativa do parlamentar resultar em um gesto negativo, quanto ao contato com a estrela.
Antes de iniciarmos a análise do texto oral proposto para a fundamentação das ideias desta produção acadêmica, é necessário que atentemos para a consideração de Fiorin (2006; p.6), acerca do ato responsivo:
Toda compreensão de um texto, tenha ele a dimensão que tiver, implica, segundo Bakhtin, uma responsividade e, por conseguinte, um juízo de valor. O ouvinte ou o leitor, ao receber e compreender a significação linguística de um contexto, adota, ao mesmo tempo, em relação a ele, uma atitude responsiva: concorda ou discorda, total ou parcialmente; completa; adapta; etc. Toda compreensão é carregada de resposta.

Como o meio externo, à luz da semântica, é responsável em criar significações para os objetos existentes na face da terra, diremos então, que a interação verbal é a atividade de interpolação de discursos: o meu e o do outro. Bakhtin (1988, p.88) menciona o fato de que o único discurso que não foi atravessado pelo discurso do outro foi o de Adão, o qual, segundo a tradição cristã, professou as primeiras palavras num mundo virgem.
A partir do momento em que um enunciado apresenta uma autoria, certamente, esta construção linguística já apresenta uma força discursiva, uma vez que todo e qualquer enunciado é uma réplica de outro, segundo Fiorin (2006).
É com base na reflexão do parágrafo anterior que daremos início à análise do corpus desta produção, a qual objetiva conduzir a atenção do leitor para a materialidade do texto, que é atravessado de réplicas enunciativas, as quais tem o intuito de desconstruir a imagem do outro para uma possível construção da imagem do locutor.
O texto a ser analisado é parte de uma plenária realizada na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ), no dia 24 de março do ano de 2010, onde uma deputada estadual do partido do PDT, Cidinha Campos, posiciona-se contrária à candidatura do também deputado estadual, José Náder Júnior, ao cargo de  conselheiro do Tribunal de Contas do Estado. Além do mais, Cidinha Campos, ainda no mesmo discurso também se mostra descontente com a possível candidatura de um outro deputado da ALERJ, José Graciosa. Para a deputada, tanto o primeiro quanto o segundo são corruptos, por isso não são dignos de concorrer a uma vaga do TCE do Rio de Janeiro. A simbologia (L1) representa a fala da deputada Cidinha Campos; (Pres.) representa a fala do presidente da sessão e (L2) representa a fala de um outro interactante que fazia parte daquela sessão.
O discurso de Cidinha Campos se inicia com a descrição negativa da imagem do outro:

L1        acabou a discussão do leite?...
Pres     ainda não...
L1        que mais tem?...
Pres     não... vossa excelência... vai discutir?...
                                                    [
L1                                                não não... eu quero falar dos que MAMam...
Pres     ((risos)) ah:: ih:: já... ((risos)) num ta na ordem do dia aqui...
L2        (  ) senhora (..)
                               [
L1                           que tava falando do leite... eu gosto de falar de quem mama...
Pres     ((risos))
L1        não das crianças que tem direito... mas dos marmanjos safados sem vergonhas
            Cafajestes... ((mudando o tom de voz)) que inFEStam a política nacional...

Por meio da semântica da palavra podemos inferir que o assunto da pauta do dia na ALERJ era sobre o leite materno, porém, a deputada fez jus à pragmática. A palavra leite dentro de um contexto de comunicação criado por Cidinha Campos, faz menção a um outro discurso: mamar nas tetas da vaca, expressão essa, que conotativamente, remete à ideia de vida fácil, tranquila. Mais adiante, no texto, a deputada explicita o verdadeiro destinatário da palavra leite, quando esta empregada denotativamente. O discurso de Cidinha Campos é uma réplica de outros enunciados. Portanto, quando ela emprega o vocábulo leite, certamente este era parte composicional de um enunciado. Bakhtin (1979, p.293) afirma que a unidade discursiva é resultado do agrupamento de palavras, que por sua vez pertencem a outros enunciados:
Quando escolhemos as palavras no processo de construção de um enunciado, nem de longe as tomamos sempre do sistema da língua em sua forma neutra, lexicográfica. Costumamos tirá-las de outros enunciados e antes de tudo de enunciados congêneres com o nosso, isto é, pelo tema, pela composição, pelo estilo;

Uma vez que a deputada, em sua intenção comunicativa, situou a plateia, aquela inicia o processo de descontrução da imagem do outro:

L1        eu subi pela escada feito uma DOIda... pra falar no primeiro horário depois que
            que eu vi o depoiMENTO do deputado Náder... se lançando candidato ao tribu-
            nal de contas do estado... ((mudando o tom de voz)) o que é isso?... eu VEjo...
            aqui nessa casa o CINIS::mo dos ladrões... que on::tem nessa tribuna... um depu-
            tado falar em moRAL com os costumes... quando o pai dele tah preso, o tio tah
            tah preso e ele é a laranja dos dois... roubando o quê::?... vacina e remédio de
            crianças...

A deputada Cidinha Campos, com todas as letras, afirma que José Náder é ladrão, logo o efeito deste discurso tende a desconstruir a imagem do deputado. Deve-se ressaltar que no cenário político nem sempre ganha a eleição aquele que melhor apresenta a sua proposta, mas sim aquele que melhor cria a sua imagem como cidadão ético, a partir da desconstrução da imagem do outro.
Percebemos que o posicionamento de Cidinha Campos é o ato responsivo dela acerca da postura de José Náder. Ao mencionarmos a palavra postura, esbarramo-nos na ideia de signo, de objeto ideológico, conforme Bakhtin (1995). Portanto, o homem é o próprio signo desse processo de interação, o qual se realiza por meio de um texto oral.
O elemento motivacional das réplicas enunciativas é o caráter ideológico presente no partido dos parlamentares e no próprio sujeito. Enquanto cidadã, Cidinha Campos assume o papel de denunciar as práticas ilegais, bem como o mau uso dos bens públicos.
Todo e qualquer evento social é capaz de ativar o efeito responsivo em cada sujeito, pois o filtro ideológico identifica tal informação veiculada no evento e posteriormente impulsiona o interactante a desenvolver o processo de argumentatividade, que se realiza por meio de juízo de valor. Esse fato é possível porque o locutor portador de discursos entra em contato com outros objetos ideológicos, os quais apresentam uma carga comunicativa. Logo, as informações encontram-se em estado dialógico, e o sujeito assume o papel de suporte de enunciados que se constroem de palavras tiradas de outros discursos.

Referência:
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1979.
_________________. Marxismo e filosofia da linguagem. 7ed. São Paulo: Hucitec, 1995.
_________________. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Editora UNESP, 1988.
FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006.
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Argumentação e linguagem. 12ed. – São Paulo: Cortez, 2009.
MEYER, Bernard. A arte de argumentar. – São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008.
http://www.youtube.com/watch?v=G-SHAak_stc  (site que contém na íntegra o discurso da deputada Cidinha Campos na ALERJ)

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