segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Larissa P. Mazuchelli

Políticas em Neurolinguística: repensando a relação entre eu e o outro
Larissa P. Mazuchelli
(Mestranda em Neurolinguistica IEL/UNICAMP)


“Certa vez eu vi a grande ave dos oceanos.
Tinha chegado à costa exausta e embateu num farol.
As grandes asas estavam quebradas.
Eu olhei aquele bicho como olho os homens brancos.
Pássaros de asas viajadoras mas que chocam contra luzes
que eles mesmos inventam.”
Declaração de Jessumina[1]

Este texto é uma breve reflexão que nasceu do Círculo 2010 – Rodas de Conversa Bakhtiniana[2]. Ele é resultado também das discussões promovidas dentro do GELEP[3] que tem se interessado por discutir, entre outras coisas, temas sobre metodologia na Neurolinguistica e que dizem respeito, de maneira geral, à importância de uma discussão sobre a relação eu/outro[4] como forma de pensar sobra práticas éticas.
Nesse momento em que somos convidados a pensar sobre política como uma atividade responsiva, volto-me novamente para essa relação entre eu e o outro como maneira de pensar como políticas linguísticas e de saúde integram essa relação.
A relação eu/outro tem sido amplamente discutida por perspectivas que se interessam pelos temas de educação e de políticas linguísticas, por exemplo. Tais perspectivas têm visto esta relação como ponto central de uma discussão também bastante recorrente: a inclusão – seja ela escolar ou social. Dada sua complexidade, parece-me que muitas reflexões não encontram em campos de saberes distintos pontos de convergência e apoio, o que pode ser uma explicação para a existência de barreiras quase intransponíveis tanto para o aprofundamento de questões nessas áreas, quanto para a própria constituição de um saber científico. É interessante observar, nesse sentido, como são raras as oportunidades em que campos do saber são capazes de se olhar (para si e entre si) e buscar verdade(s) científica(s) que condiga(m), cada vez mais, com o “mundo da vida[5]”, como diria Bakhtin (apud Faraco, 2009).
No que concerne à avaliação e acompanhamento terapêuticos de sujeitos com alterações de linguagem isso não é diferente. O olhar de uma Neurolinguistica tradicional a que nos contrapomos[6] tem se caracterizado, basicamente, por um “fechamento em si mesmo”, uma centralização em suas práticas e teorias, não somente pela posição assumida de suposta superioridade científica, que objetiviza, mas que também acaba por neutralizar, obscurecer, apagar traços do outro.
É nesse sentido que revisitar essa relação parece ser interessante para pensarmos nossa atuação, pois apesar dos avanços tecnológicos, o humano parece ainda ser deixado de lado em tais perspectivas[7]. Num momento em que discussões sobre inclusão se fazem preeminentes, entraríamos, aqui, em um caminho de apelo pela inclusão do que há de humano e, portanto, subjetivo, nessas perspectivas. Contudo, mais do que objetivar um sujeito, o que temos visto em tais perspectivas é um olhar que perpassa o outro sem ser por ele influenciado. Faz-se necessário, como acreditamos, revisitar nossas condições, nossos olhares sobre nós mesmos para podermos reavaliar a condição do outro em nossas práticas, sejam elas com objetivos educacionais ou terapêuticos e de pesquisa.
Carlos Skliar (2003), ao se enveredar pelos caminhos do que hoje tem sido chamado de “pedagogia da diferença”, considera ser tal prática “improvável” caso não nos empenhemos em redefinir a condição do outro em nossas vidas. Para tanto, ele simplesmente se questiona: “e se o outro não estivesse aí?”. Ao me apropriar dessa discussão e trazê-la para nossas reflexões, acrescento: como é possível que ainda hoje a noção de alteridade possa parecer tão óbvia (a ponto de ser tão pouco pensada e praticada) e ao mesmo tempo esvaziada de significado? Será que podemos compreender a noção de alteridade de Bakhtin apenas no que diz respeito a uma relação entre interlocutores? Até onde a noção de alteridade tem, em nossas práticas, alcance? Quais são as implicações desse olhar sobre o outro para a constituição teórica e prática de pesquisa e acompanhamento terapêutico?
Para Bakhtin, o lugar que o sujeito ocupa é singular e é o lugar de sua assinatura. Nesse sentido, apenas ele ocupa este lugar e somente ele pode assinar por si e é isso o que o torna responsável, num dado momento, num dado contexto.
Essa singularidade do momento e do sujeito é o que permite pensarmos em ética em Bakhtin, mas como nos constituímos como sujeitos dialogicamente, nossa constituição depende do outro que confere sentido a nossas palavras. E aí se torna imprescindível pensarmos também na condição do outro em nossas decisões políticas, em nossas práticas de pesquisa e de terapia. Em outras palavras, podemos dizer que é somente na relação com o outro que teoria e estética se tornam ética. Na Neurolinguística, é na terapia, portanto, no contato com o outro que a teoria sobre ele se torna ética.
Contudo, como temos visto em nossas pesquisas, a busca pela compreensão do outro (da língua do outro, de sua patologia, de sua condição), nos estudos sobre sujeitos com alterações de linguagem, muitas vezes, ainda se sustenta no referencial único do terapeuta/pesquisador. O que significa, afinal, compreender o outro? Ser tolerante? Aceitar sua condição, mas manter a distância existente? Mas e se o outro, seja ele afásico ou não, simplesmente não estivesse ali? O que seria do meu lugar singular, irrepetível, e de minhas decisões sem ele?
Há de se criar um “profundo silêncio” para que uma “metamorfose” aconteça, é o que afirma Skliar. Só o silêncio nos permite chegar ao outro, a ouvir o outro e então “abandonar a homodidática para heterorrelacionar-se”: qualquer atitude contrária a essa premissa, digamos, torna qualquer prática pedagógica (e eu acrescentaria, terapêutica e de pesquisa) improvável. A renúncia à transparência (do outro, do discurso, de mim) é o que garante o posicionamento responsivo e ético do pesquisador.
O interesse de Skliar em desconstruir uma prática de alteridade que, para ele é falsa, tem um caráter, eu diria, poético, porque não busca apresentar um modelo que possa dar conta da(s) diversidade(s) ou que tente buscar, no objetivismo da ciência, explicações sobre a relação entre alteridade e identidade. Parece-me, ainda, libertário porque encara esse tema como um caminhar errante, que avança e regride, sem promessas, sem “verdades absolutas”, buscando apenas (o que é muito!) um outro olhar sobre nossas práticas, principalmente, e sobre esse outro que inevitavelmente me constitui como sujeito social e de linguagem.
Essa discussão feita por Skliar caminha no sentido de tentar romper com que ele tem chamado de “reforma da mesmidade”: reformas que se dizem de caráter múltiplo, dinâmico, que olham para o outro e o incluem em sua condição e em sua prática, mas que, na verdade, centram-se nelas mesmas para olhar para o outro – não são olhadas por esse outro e por ele influenciadas. É esse tipo de olhar que mantém a mesmidade e não avança no aprofundamento de questões relativas à prática (ética e responsável) política, pedagógica, terapêutica e de pesquisa.
Essa nossa tentativa de revisitar essa questão é uma maneira de, movidos pelo desejo de mudança, não esbarrarmos na “burocratização do outro, sua inclusão curricular, seu folclore, seu exotismo, sua pura biodiversidade” (Skliar, 2003, p. 197), e acrescento, sua doença, sua (a)normalidade.  Esses caminhos traçados por essas perspectivas, estejam elas no âmbito da educação ou nas neurociências, ainda se sustentam na criação de “novas terminologias sem sujeitos”, mostrando-se ainda emblemático e perigoso justamente porque raramente nos damos conta de quais são e serão as conseqüências que essas normalizações e rotulações podem suscitar nas vidas (“mundo da vida”, de Bakhtin) desses sujeitos, que existem apesar de não serem vistos, que lutam contra suas condições, mas que muitas vezes são deixados de lado pelo olhar do outro que não os enxerga.
Nossas práticas (a partir do conceito de exotopia, de Bakhtin) nos permitem repensar a condição do outro, mas exige que repensemos o outro em nossas práticas: o sujeito com alteração de linguagem, apesar de todas as avaliações e prognósticos pessimistas dessa neurolinguistica tradicional, pode resistir[8] e conseguir manter sua condição de humanidade graças a sua relação com os outros que o constituem como sujeito social e da linguagem. Os casos que acompanhamos e que nos movimentam no grupo III do CCA, IEL/UNICAMP[9], fazem-nos repensar nossas condições e práticas incessantemente. Pedem-nos para serem ouvidos, para que o humano que há neles não seja normatizado, fixado e apagado.
Skliar utiliza uma metáfora de enclausuramento para tratar essa questão no âmbito escolar. As instituições que se fecham em si como forma de controlar tudo o que sob seus olhares acontece, silenciam o outro por meio de um contínuo processo de homogeneização. Esse enclausuramento, e suas implicações, pode ser encontrado também na política pública e de saúde, nas práticas terapêuticas e de pesquisa que, ao incluírem o constante medicar, adaptar, comparar, (des)humanizar, também neutralizam e apagam o outro. 
As implicações de se revisitar a relação eu/outro tem como constatação o fato de que a prática ética[10] do pesquisador não pode reduzir qualquer tentativa de pluralidade – com o(s) outro(s) – a um modelo fixo, estável e asséptico, ou a uma relação de compreensão que parta unicamente do eu para a compreensão do outro. Há de buscarmos uma prática (política, educacional, terapêutica e de pesquisa), que não emudeça, que possibilite a indeterminação, a multiplicidade, a singularidade (como coloca Bakhtin) e a “babelização” (como afirma Skliar); uma prática que não seja homogeneizadora, irreal e abstrativista, em que a saída para a mesmidade, para uma igualdade falseada, não seja uma saída considerada ética.
  A importância da inconstância e da instabilidade na/da relação eu/outro parece ser um caminho interessante para o reconhecimento de que sem o outro, eu nada seria; cairia na “vacuidade”, como coloca Skliar. Essa mudança de perspectiva e esse apelo à instabilidade dessa relação (que não nega seu caráter conflituoso) são também libertários no sentido de que não nos exige enquadramentos e conclusões que levam a dogmas, preconceitos e falsas mudanças.
Em outras palavras, o lugar de tensão entre eu e o outro, entre a imagem que construo de alguém e a imagem que faço de mim mesmo, assim como a que esse outro faz de si e de mim é o lugar irrepetível e singular onde o ato ético acontece. Em nosso posicionamento ético, o conceito bakhtiniano de exotopia ganha outro sentido: do lugar do pesquisador (ou do professor, ou do terapeuta) o pesquisador dá ao outro um novo sentido que vem dessa tensão entre eu e o outro, mas que para acontecer como prática ética deve ser ouvida e modificada pelo outro. Como afirma AMORIM (2007: 14) “Minha tarefa é tentar captar algo do modo como ele se vê, para depois assumir plenamente meu lugar exterior e dali configurar o que vejo do que ele vê”, mas para que isso ocorra de maneira a não cairmos na mesmimade acreditamos que seja necessário que se estabeleça uma relação outra com esse que me significa: é necessário saber ouvir e, portanto, calar-se, silenciar-se.
Podemos pensar, novamente, que nós inventamos a diferença e a igualdade, inventamos a (a)normalidade e o patológico e com nossas invenções, se fecharmos nossos olhos para o outro, seremos continuamente levados a nos chocar contra nossas próprias luzes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
AMORIM, M. (2007). “A contribuição de Mikhail Bakhtin: a tripla articulação ética, estética e epistemológica”. In: FREITAS, M. T. de; SOUZA, S. J. e; KRAMER, S. (org.). Ciências humanas e pesquisa: leituras de Mikhail Bakhtin” 2.ed. São Paulo, SP: Cortez.
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: Estética da Criação Verbal, 1997.
CANOAS-ANDRADE, R. C. (2009). Questões neuropsicológicas e neurolingüísticas de uma afasia fluente/progessiva: interferências a partir de um estudo de caso para a clínica fonoaudiológica. Dissertação (mestrado) – IEL/UNICAMP. Campinas, SP.
COUDRY, M. I. H. Diário de Narciso - discurso e afasia. Campinas: Martins Fontes, 1988.
COURY, M. I. H. & POSSENTI, S. “Avaliar discursos patológicos”. In: Caderno de Estudos Lingüísticos, v.05, pp 99-109
FARACO, C. A. (2009). “O Círculo de Bakhtin”. In: Linguagem e Diálogo: as idéias lingüísticas do Círculo de Bakhtin. São Paulo, SP: Parábola Editorial.
FREITAS, M. T. de A. (2007). “A perspectiva sócio-histórica: uma visão humana da construção do conhecimento”. In: FREITAS, M. T. de; SOUZA, S. J. e; KRAMER, S. (org.). Ciências humanas e pesquisa: leituras de Mikhail Bakhtin” 2.ed. São Paulo, SP: Cortez.
MORATO, E. (2001). “Neurolinguistica”. In: MUSSALIN, F. & BENTES, A. C. (org) Introdução à Lingüística: domínios e fronteiras. São Paulo, SP: Cortez, v.02, pp 143-170
NOVAES-PINTO, R. C. (1999). A contribuição do estudo discursivo para uma análise crítica das categorias clínicas. Tese (doutorado) – IEL/UNICAMP. Campinas, SP
ROUSSEAU, J. “Discurso sobre as ciências e as artes”. In: Os Pensadores. Abril Cultural (1973)
SKLIAR, C. (2003). “E finalmente: Ai! Por que temos de nos reformar tanto? – notas para uma pedagogia (improvável) da diferença”. In: Pedagogia (improvável) da diferença: e se o outro não estivesse aí? Rio de Janeiro, RJ: DP&A Editora
__________ (2003). “Entre o e se o outro não estivesse aí? E a atenção à diversidade – notas para um esclarecimento tão confuso quanto estranhável”. In: Pedagogia (improvável) da diferença: e se o outro não estivesse aí? Rio de Janeiro, RJ: DP&A Editora
SOBRAL, A. (2007). “Ético e estético: na vida, na arte e na pesquisa em Ciências Humanas” In: BRAIT, B. (org). Bakhtin: conceitos-chave.



[1] Mia Couto (2004). Vinte e Zinco. Lisboa: Editora Caminho (1999)
[2] O “Círculo 2010 - Rodas de Conversa Bakhtiniana” foi realizado pelo Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso, grupo coordenado por Valdemir Miotelo na UFSCar em São Carlos. Para esse encontro, os participantes foram convidados a escrever sobre o tema “Bakhtin e a atividade estética: novos caminhos para a ética”. Escrevi o texto: “Considerações sobre a relação entre eu e o outro: questões sobre práticas éticas” que pode ser encontrado em http://textosgege.blogspot.com/2010/09/consideracoes-sobre-relacao-entre-eu-e.html
[3] O GELEP é o Grupo de Estudos da Linguagem no Envelhecimento e nas Patologias e é coordenado por Rosana do Carmo Novaes-Pinto do IEL/UNICAMP.
[4] Segundo Faraco (2009), a relação eu/outro é um dos eixos “constantes e nucleares do pensamento bakhtiniano e de seus pares” (p. 22)
[5] Bakhtin afirma haver um dualismo entre o que chama de mundo da teoria, que seja, segundo Faraco (2009), pg 18: “o mundo em que os atos concretos de nossa atividade são objetificados na elaboração teórica de caráter filosófico, cientifico, ético e estético” e o mundo da vida, “o mundo da historicidade viva, o todo real da existência de seres históricos únicos e irrepetíveis, o mundo da unicidade irrepetível da vida realmente vivida e experimentada”, não é transposto pela prática científica. Bakhtin critica, segundo o autor, a desvinculação, no mundo da teoria, do mundo da vida. Faraco afirma que segundo Bakhtin: “Essa superação só será alcançada quando se subsumir a razão teórica na razão prática, entendida esta como a razão que se orienta pelo evento único do ser e pela unicidade de seus atos efetivamente realizados; em outras palavras, que se orienta a partir do vivido, i.e., do interior do mundo da vida” (pp. 18-19)
[6] A neurolinguistica de orientação enunciativo-discursiva, a qual nos filiamos, contrapõe-se à chamada neurolinguistica tradicional por conta de suas concepções metodológicas e teóricas, principalmente, com relação às noções de sujeito, língua(gem), avaliação e acompanhamento terapêutico. Sobre essas discussões ver Coudry (1988), Coudry & Possenti (1983), Novaes-Pinto (1999), Morato (2001).   
[7] J.J.Rousseau diria, já no século XVIII, ao contrário, que o humano tem sido deixado de lado em decorrência do avanço sistemático da tecnologia.
[8] Faço referência aqui ao trabalho de Canoas-Andrade sobre o sujeito AJ. Segundo a pesquisadora, que acompanhou o sujeito ao longo de 2 anos, “o fato de AJ sobreviver a todos os episódios neurológicos dos quais foi vítima, nos mostra a presença do sujeito na doença. O fato de continuar sendo sujeito, apesar dos impactos e das lesões em sua vida, nos mostra a força das interações sociais e dialógicas.” (p. 121). É importante salientarmos que AJ ainda constitui-se como sujeito por estar imerso em situações dialógicas, nas interações sociais – em casa e no grupo III do Centro de Convivência de Afásicos, no IEL/UNICAMP –, nas quais a significação é construída conjuntamente, numa ação solidária entre os “parceiros de comunicação” (BAKHTIN, 1929/1997).
[9] O grupo III do CCA funciona desde 2005 e é coordenado pela professora Dra. Rosana do C. Novaes-Pinto.
[10] Sobral (2007) afirma, ao discutir a teoria de Bakhtin, que: “é ético o pesquisador que se empenha em promover, se necessário, revisões da teoria, ou que a abandona caso ela já não sirva a esse objeto.” (p.116)  

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